Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O ano dos manifestantes, os ecos do “esquecido”

Em sua nomeação anual de “Pessoa do Ano”, a revista norte-americana Time divulgou que em 2011 ninguém teve maior destaque que a figura do manifestante. Com a frase “Da Primavera Árabe a Atenas; do Occupy Wall Street a Moscou” à frente da imagem de um rosto encapuzado, a impactante capa da publicação faz um tributo aos milhares (talvez milhões) de ativistas, em sua maioria anônimos, que deixaram marcas ao redor do mundo. Entre protestos contra ditaduras políticas e o repúdio a medidas impostas por órgãos econômicos internacionais, as ruas foram o grande palco da insatisfação diante das arbitrariedades do poder.

É lugar-comum comentar que essa mobilização foi permitida pelo avanço das tecnologias de comunicação e informação, dentro das quais podem ser contabilizadas a grande influência alcançada pelos sites de redes sociais, que permitiram o rápido compartilhamento de material. Este, diverso, foi composto tanto por imagens de protestos quanto por chamados conclamando à ação das pessoas comuns. O planeta foi sacudido pela associação de pessoas que nunca haviam se visto: árabes derrubaram governos que pareciam eternos, chilenos lutaram contra mudanças no sistema de educação, norte-americanos praticaram uma nova forma de desobediência civil ocupando espaços e atingindo visibilidade midiática (o que, no início, parecia que não iria acontecer), entre muitos outros exemplos.

Reivindicações legítimas

Interessante contrastar, contudo, o tributo realizado pela publicação semanal (a mais lida do mundo, contando também com edições internacionais e regionais) neste ano com a divulgação do ano passado. Aliás, é melhor comparar com quem foi esquecido: enquanto o criador do Facebook e mais jovem bilionário da história, Mark Zuckerberg, foi o agraciado com os holofotes de personalidade de 2010, o mundo se perguntou o motivo da Time ter ignorado o ciberativista australiano Julian Assange, um dos responsáveis pelo site WikiLeaks, que vazou diversos documentos diplomáticos confidenciais, colocando em embaraço especialmente o serviço de relações exteriores dos EUA. Exemplo disso foi o Iraq War Logs, pacote de cerca de 400 mil documentos sobre a invasão ao Iraque que tratavam de torturas de prisioneiros e ataques contra civis pelos soldados das forças norte-americanas e aliadas.

Relações entre a empreitada de Assange e a ação dos manifestantes around the world são facilmente traçáveis: descontento com as decisões estatais, desconfiança em relação às informações divulgadas pela mídia e por sua relação com os poderes políticos/econômicos, mobilização de cidadãos baseada no voluntarismo, na crença de que o indivíduo pode fazer a diferença. De fato, a desterritorialização proporcionada pela interação via tecnologias incrementou a busca por ação solidária, seja em nível municipal, nacional ou internacional.

Durante o ano que termina, Assange e o WikiLeaks enfrentaram diversos problemas: ele, acusado de crimes sexuais em condições extremamente suspeitas; a organização, o estrangulamento resultante do cerceamento às doações que a mantêm, fruto de pressões do governo dos EUA. Já os movimentos sociais foram repetidamente combatidos por forças policiais e mesmo resultaram em guerra civil, como na Líbia. Contudo, em especial nos países mais distantes, as reivindicações foram encaradas pelos meios de comunicação como legítimas, como a luta pela democracia e liberdade de povos oprimidos. Não é difícil perceber que, quanto mais longe, mais maniqueista se torna a exposição (e interpretação) dos fatos.

Novas formas de sociabilidade

Os protestos ocorridos em agosto na Inglaterra, por exemplo, fornecem um relevante panorama. O governo do primeiro-ministro David Cameron divulgou a pretensão de suspender os meios de comunicação digital durante ações populares de contestação. A medida, vagamente referida na mídia internacional, é análoga à implementada pela administração de Hosni Mubarak, líder egípcio que caiu no início do ano, e que foi duramente criticada. Alguma justificativa plausível?

É necessário atentar para o nosso quintal tanto quanto para o do vizinho. As demandas de diversos grupos são desqualificadas a partir das ideias que as sustentam: o Occupy Wall Street, por exemplo, tem em seu cerne um forte questionamento das estruturas econômico-financeiras que incidem diretamente sobre a condição dos cidadãos comuns; porém, é repetidamente retratado como um festival de novos hippies “paz e amor”, um show de excentricidades jurássicas. O perigo mora justamente em comutar esses ativistas em românticos, criando uma atmosfera de saudosismo que esconde as intenções do movimento.

Julian Assange e o WikiLeaks questionaram tanto as formulações dos círculos de poder quanto as mobilizações dos diferentes grupos ao redor do mundo neste ano. Mas uma coisa é dar visibilidade a uma personalidade/organização com metas que desestabilizam as decisões secretas de Estados como EUA e Grã-Bretanha; outra é celebrar a figura romantizada do manifestante, em especial aquele que atua em outras partes do mundo, contra o Mal instituído (como Mubarak, Muamar Kadafi e outros). Um novo mundo, novas formas de sociabilidade. Mas, certamente, metas antigas ainda a serem alcançadas.

 

Leia também

Política externa e a “mania de grandeza” – I.B.

Enquadrando Néstor Kirchner – I.B.

***

[Ivan Bomfim é doutorando em Comunicação e Informação pela UFRGS]