Friday, 29 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Assim caminhou a privataria

Na página 306 do livro A Privataria Tucana, o jornalista Amaury Ribeiro Jr. cita o Congresso em Foco. Ele se refere a uma reportagem do site publicada no dia 23 de outubro de 2010. À época, Amaury era o pivô de várias notícias publicadas na imprensa que envolviam o comitê de campanha da então candidata do PT à Presidência da República, Dilma Rousseff. O jornalista tinha sido procurado para tentar desvendar quem seria responsável por vazamentos de informações que aconteciam na campanha e acabou esbarrando num violentíssimo caso de fogo amigo dentro do próprio PT. No curso da apuração do caso, descobriu-se que Amaury preparava um livro sobre o processo de privatização ocorrido no governo Fernando Henrique Cardoso. E Amaury foi acusado de ter comprado informações do sigilo fiscal da filha do ex-governador de São Paulo José Serra, Verônica Serra, e de outros tucanos de alta plumagem.

Matérias publicadas à época diziam que Amaury, na investigação policial que se seguira à denúncia, confessara ter de fato obtido ilegalmente tais informações sob sigilo. De posse da íntegra dos depoimentos de Amaury e dos demais envolvidos, o Congresso em Focomostrou que Amaury era acusado de ter feito isso, mas que ele mesmo não confessara nada. “Além dos blogs, um único jornalista (…), do site Congresso em Foco, publicou a história verdadeira”, escreve Amaury.

A reportagem citada por Amaury em A Privataria Tucana inicia, referindo-se ao rolo em que o jornalista se viu metido, com a seguinte frase: “Não parece haver santos na história…”. Se a frase servia para resumir aquele episódio, ela serve também para resumir o conteúdo do livro escrito por Amaury Ribeiro Jr., publicado pela editora Geração Editorial. Um fenômeno de vendas (a primeira edição, de 15 mil livros, esgotou-se no primeiro dia, e uma segunda edição, com 85 mil exemplares foi feita e já foram vendidos 70 mil livros), o livro vem sendo duramente criticado pelo PSDB e por aqueles que estiveram diretamente ligados ao governo Fernando Henrique Cardoso e ao processo de privatização. José Serra referiu-se a ele com uma frase: “É um lixo”. Em nota, Fernando Henrique o classificou como “uma infâmia”. E o PSDB diz que o livro tem “características de farsa” (ver aqui). Ao mesmo tempo, o livro passou a semana sendo incensado por parlamentares ligados ao PT e ao governo.

Esconder tudo

Pois bem, uma leitura isenta das 343 páginas de A Privataria Tucana só pode chegar ao fim com a mesma conclusão que iniciava a matéria mencionada do Congresso em Foco: “Não há santos nessa história…” Em primeiro lugar, impressiona o imenso conteúdo de documentos que demonstram movimentações financeiras em paraísos fiscais, no mínimo estranhas, de personagens devidamente identificados com o ninho tucano e o processo de privatizações, especialmente Ricardo Sérgio de Oliveira, que à época era o diretor da área internacional do Banco do Brasil. Mas também pessoas ligadas a ele ou ao processo, como João Bosco Madeiro, que comandava a Previ, fundo de pensão do Banco do Brasil, e os empresários Carlos Jereissati e Daniel Dantas, que disputaram as empresas formadas no processo de privatização das telecomunicações. De Daniel Dantas, chega-se à sua irmã, Verônica Dantas Rodenburg. E dela, chega-se à filha de Serra, Verônica.

Uma documentação cujo conteúdo não pode mesmo ser desprezado por nenhuma pessoa honesta e que, sem dúvida, merece investigação. Que apure sua autenticidade e outros aspectos que a simples leitura do livro é incapaz de comprovar. Porém, a maior parte da documentação reproduzida no livro foi obtida pela CPI do Banestado, ocorrida no Congresso em 2003, presidida por um tucano, o senador à época Antero Paes de Barros (PSDB-MT), e relatada por um petista, o então deputado José Mentor (PT-SP). Quando agora se fala na criação de uma nova CPI para apurar o que está no livro de Amaury, a pergunta inevitável que fica é: por que não se investigou tudo àquela época?

A conclusão de que “não há santos nessa história” é corroborada por Amaury Ribeiro Jr. na entrevista a seguir, ao responder à pergunta acima. “Infelizmente, houve um grande acordão”, diz ele, sobre a CPI do Banestado. Com a multiplicação do aparecimento de personagens os mais diversos, ligados tanto à oposição quanto ao governo, e também a outros setores – o futebol, o narcotráfico, etc –, combinou-se esconder tudo. Eis o mérito do livro de Amaury: trazer à luz o que antes se combinou deixar escondido. Leia a entrevista.

A maioria dos documentos reunidos no livro foram recolhidos e produzidos pela CPI Banestado. Desde que seu livro saiu, parlamentares do PT e de outros partidos da base do governo têm se revezado na tribuna para elogiar o seu trabalho e pedir investigações sobre as privatizações. Se os documentos são de uma CPI, se o relator dessa CPI era do PT, por que essa investigação já não aconteceu naquela época? Por que não foram já então tomadas providências?

Amaury Ribeiro Jr. – Essa documentação só chegou até as minhas mãos porque um juiz assim determinou. Eu estava sendo processado pelo Ricardo Sérgio de Oliveira e os advogados da revista IstoÉ, onde eu trabalhava, alegando exceção da verdade, pediram judicialmente os documentos da CPI porque ali estavam as provas do que eu dizia nas reportagens. Como o juiz assim determinou, o então presidente da CPI, senador Antero Paes de Barros [PSDB-MT], entregou a documentação. O juiz avisou-os de que, caso não fossem mandados os documentos, ele determinaria uma busca e apreensão na CPI.

OK, mas os documentos estavam lá. Um deputado do PT os conhecia. Por que precisou você tomar conhecimento dessa documentação, por que precisou da sua intermediação para essa documentação vir à tona? Quem, desde aquela época, conhecia a documentação não poderia desde então ter feito a investigação agora pedida?

A.R.J. – Infelizmente, houve um grande acordão. PT e PSDB fizeram um acordão na época para parar a investigação. Aquilo começou a incomodar todo mundo pelo volume de informações ali contidas. Porque os casos de lavagem de dinheiro que começaram a aparecer ali não envolvem só o que está relacionado ao processo de privatização. Como está descrito em algumas partes do livro, apareceu gente ligada aos mais diversos grupos e atividades. Começaram a aparecer coisas relacionadas ao Henrique Meirelles, que à época era o presidente do Banco Central no governo Lula. Então, guardou-se tudo. E eu só consegui por determinação da Justiça. E, durante muito tempo, eu mesmo não podia usar porque a documentação estava vinculada a um processo em curso. Somente em 2008, quando ganhei o processo, é que pude pedir o desarquivamento da documentação, que estava guardada num arquivo no Museu da Justiça, que fica no Ipiranga, em São Paulo. Até então, eu mesmo não conhecia esse conteúdo.

“Com mais de mil páginas de documentos, não há conexão?”

Isso demonstra, então, que não tem santo nessa história…

A.R.J. – Não tem santo nessa história. Agora mesmo, há uma movimentação para fazer uma nova CPI, que está sendo pedida pelos deputados Protógenes Queiroz [PCdoB-SP] e Brizola Neto [PDT-RJ]. E voltam a tentar uma negociação, a dizer que não tem foco. Como não tem foco? Os documentos estão aí. Eu só peguei uma parte. Precisa haver, sim, uma investigação a chegar a todo o resto. Até para dizer, de fato, se eu estou ou não falando a verdade.

Há, sem dúvida, uma farta documentação reproduzida no livro, no que se refere à movimentação de dinheiro em paraísos fiscais, especialmente nas Ilhas Virgens Britânicas, de personagens ligados ao PSDB e ligados ao processo de privatização. Ricardo Sérgio, Verônica Serra, etc. Mas tem sido feita uma crítica de que essa documentação não é capaz de fazer uma conexão direta das movimentações com o processo de privatização…

A.R.J. – Como não há conexão? O Carlos Jereissati faz parte de um consórcio que ganha uma fatia da privatização e faz, depois, um depósito numa conta do Ricardo Sérgio. O [Gregório Marín] Preciado, primo do Serra, leva a privatização da Coelba [Companhia de Eletricidade da Bahia – segundo o livro, Preciado representava no processo da privatização a empresa espanhola Iberdrola] e paga também. Isso não é conexão? Nós temos que lembrar que Ricardo Sérgio era um cara totalmente ligado àquele processo. O cara que tinha o domínio da Previ e do Banco do Brasil, que ajudou a formar os consórcios. Parece haver uma grande má vontade de quem faz essas considerações. O Palocci enriqueceu quando era o coordenador da campanha da Dilma. Alguém se levantou para dizer que não havia conexão direta entre o trabalho do Palocci na campanha e os contratos da empresa dele? O que apareceu ali foram indícios, mas que foram suficientes para derrubá-lo como ministro da Casa Civil. Agora, aparecem mais de mil páginas de documentos e não há conexão? O consórcio do cara ganha o processo e ele paga para quem faz a privatização. O que é preciso discutir? O que se queria: uma guia de depósito que dissesse “pagamento de propina feita pela vitória na privatização”?

“Todo mundo se acertou e receberam dinheiro de todos”

Quantos documentos você reuniu? Quantas páginas de documentos você calcula possuir referentes ao processo de privatização e à lavagem de dinheiro?

A.R.J. – Mais de mil. E há mais coisas, de outros assuntos, que não foram usadas no livro porque ainda precisam de mais apuração, de mais investigação. E eu diria que algumas até mais violentas.

A descrição feita no livro sobre o processo de privatização mostra que o governo Fernando Henrique, à época, dividiu-se entre aqueles que trabalhavam por vitórias do grupo ligado a Carlos Jereissati e os que trabalhavam pelo grupo liderado por Daniel Dantas. Mas depois, nas movimentações feitas nos paraísos fiscais, esses grupos muitas vezes se encontram nas mesmas lavanderias de dinheiro. Como se dá isso?

A.R.J. – Porque há um personagem principal nisso tudo, que é o Ricardo Sérgio. Tanto os grupos que perderam quanto os que ganharam no processo de privatização da Telemar não tinham inicialmente o dinheiro necessário para concorrer. Eles precisavam do apoio da Previ. E quem controlava a Previ? O Ricardo Sérgio, através do João Bosco Madeiro da Costa. E ambos usavam o mesmo caminho de internação do dinheiro vindo do exterior no Brasil. No final, todo mundo se acertou e eles receberam dinheiro de todos. A documentação deixa isso bem claro.

“Os processos de lavagem de dinheiro”

Então, Ricardo Sérgio operava para os dois grupos?

A.R.J. – Essa não é uma tese nem minha. É uma tese que está em um processo de improbidade movido pelo Ministério Público. O que os procuradores dizem é que os grupos que se habilitaram para concorrer na privatização das empresas de telecomunicação não tinham o dinheiro necessário para concorrer. Os grupos entraram, então, com cartas de fiança dadas pelo Banco do Brasil. Por quem? Por Ricardo Sérgio. E dependiam, depois, para compor os grupos que formavam, da Previ, que era um fundo milionário, que ficou com a maior parte das empresas que se formaram ao final do processo de privatização. E o Ricardo Sérgio controlava a Previ, através do João Bosco Madeiro da Costa.

E José Serra e Verônica Serra, como você resumiria o papel deles nesse processo todo?

A.R.J. – Ficava mapeada uma ligação direta, bem logo após a privatização, com o grupo Opportunity, que ganhou com um dos consórcios uma fatia da privatização. Verônica Serra monta uma sociedade com a irmã de Daniel Dantas, Verônica Dantas Rodenburg. Verônica Serra diz que o negócio acabou, foi fechado, não existe mais. Os documentos contidos no livro mostram que o negócio não acabou, não foi fechado. Está lá a movimentação, a partir da Citco [Building, off-shore], nas Ilhas Virgens Britânicas. Uma manobra para internação de dinheiro, do mesmo tipo da que é usada, a partir dessa mesma off-shore, a Citco, por outros personagens, de Ricardo Teixeira a Fernandinho Beira-Mar.

Esse é outro aspecto que chama a atenção no livro, além do que se relaciona diretamente ao processo de privatização. Os mais variados personagens da política, do governo, da oposição, do narcotráfico, do futebol, usam as mesmas lavanderias…

A.R.J. – O mais importante que há neste livro, na minha opinião, é explicar os processos de lavagem de dinheiro. As falhas da legislação, os mecanismos de legalização de dinheiro obtido no crime, na corrupção, de maneira ilegal.

“Nem ganharam e já estão brigando pelos cargos”

Voltemos, então, à primeira questão posta na entrevista. Talvez seja por isso – porque grupos diversos estejam envolvidos nos mesmos desvios, nos mesmos caminhos, nos mesmos processos – que as investigações acabem não seguindo, acabem empacando em acordões?

A.R.J. – Só pode ser isso, né? Veja agora: se o Protógenes e o Brizola Neto disseram que conseguiram as assinaturas para instalar uma CPI da Privatização, por que o PT não assina? É por que quer negociar alguma coisa? Vai ficar muito feio se o PT não assinar esse pedido de CPI e se, com a maioria que o governo tem, não instalar essa investigação. Que leitura vai ser feita disso? Hoje, há um mundo novo fora dos meios tradicionais de comunicação, na internet, que cobra, que vigia. Com uma força surpreendente. Veja que nenhum jornal, nenhuma revista, falava do meu livro e ele já estava com a primeira edição completamente esgotada e se esgotando a segunda. Eu percebo que o livro virou uma bandeira para alguns ligados ao governo e ao PT. Como é que fica isso? Vai ficar muito feio.

Antes do livro sair, você acabou se tornando personagem do noticiário, na confusão havida no comitê de campanha da então candidata à Presidência, Dilma Rousseff. No curso do que surgiu na época, se disse que alguns dos documentos que hoje estão no livro foram obtidos de forma ilícita. Como você responde a essas acusações?

A.R.J. – Eu respondo com documentos. As pessoas que me acusam de ter quebrado o sigilo já estavam com o sigilo quebrado. Dizem que eu fui indiciado, mas ninguém diz que isso não virou nem denúncia contra mim. Me acusam como se eu fosse condenado por quebra de sigilo e não houve nem denúncia. Eu estou me defendendo. Isso ainda vai dar outro livro. Porque vou mostrar que o que saiu contra mim nos jornais foi outro caso da Escola Base. Agora, a Verônica Serra é ré num processo por quebra de sigilo bancário.

Por conta desse episódio no comitê de Dilma, o final do livro não se refere nem a privatização nem a lavagem de dinheiro. Narra uma violenta troca de fogo amigo dentro do próprio PT na campanha, contrapondo, de um lado, um grupo ligado ao hoje presidente do PT, Rui Falcão, e de outro, um grupo ligado ao atual ministro do Desenvolvimento, Fernando Pimentel. Te impressionou a virulência dessa briga? Porque ela poderia ter mesmo prejudicado a campanha de Dilma, não?

A.R.J. – Me impressionou muito. Me deu até medo. Eu fui para lá achando que iria investigar uma infiltração de alguém ligado ao candidato do grupo oposto, José Serra, na campanha. E, no final, era o PT contra o PT. Fogo amigo pesado. O que ficou claro para mim é o que os interesses em jogo – seja por dinheiro, seja por poder – estão muito além do esforço para eleger o candidato. Os caras começam a se matar antes mesmo de ganhar a eleição, de nomear os ministros. Nem ganharam e já estão brigando pelos cargos. Isso parece inacreditável. Mas aconteceu.

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[Rudolfo Lago, do Congresso em Foco]