Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A incompatibilidade entre ciência e fé

Podemos contar com a mídia para nos guiar nos problemas do aquecimento global? É uma pretensão que o OI propõe que a mesma faça. Mas sabemos que a mídia não é confiável neste aspecto científico. Não é algo do que consegue compreender o significado! Isso fica manifesto pela leitura da revista Veja, edição 1.994 (7/2/2007), no artigo ‘Especial – Como a fé desempatou o jogo’, por Okky de Souza. Num artigo pseudocientífico, sem consistência documental ou fática, o jornalista faz uma salada de frutas com conceitos improváveis para tentar provar que foi a religião que determinou a vitória de um hominídeo. Isto numa revista de enorme tiragem. Imagine-se o que acontece nas nanicas!

Primeiro engano do artigo é a tentativa de argumentar que, em algum momento, a ciência tenha sido proposta para ser colocada no lugar da religião. Falta a essa tentativa o principal: que se trata de um objetivo incompatível com certezas, dogmas e fé! A ciência não poderá jamais satisfazer os anseios de quem precisa ir a um templo, ouvir a mesma história, querer verdades definitivas, doar seus recursos financeiros para conquistar a felicidade, comunicar-se com os mortos ou proporcionar a vida após a morte. Não é seu objetivo ou sua função conduzir a humanidade. Ela se propõe a esclarecer os fenômenos naturais do mundo sensível e testar alegações de coisas e fatos para comprovar sua veracidade e sua existência. Ela liberta o homem da escuridão e da ignorância. Não entra no mérito moral e não promete a vida eterna. Uma verdade científica deve ser igual no Oriente e no Ocidente, no Ártico e na Antártida, na Terra ou em Marte.

As variações da gravidade e da temperatura de fervura da água não dependem de uma autoridade, de uma revelação e não se sujeitam à vontade do homem. As causas das doenças de um católico, judeu ou budista são as mesmas, as mesmas causas naturais de que os animais padecem, apesar de que cada um desses crentes acreditar que assim não seja. E, na verdade, na própria história da humanidade, atribuíram-se causas fictícias e contrárias. Religiões, existem milhares, fora as divergências litúrgicas de cada uma, mas a verdade científica deve ser uma e não dependente da vontade de cada crente. Não existem duas populações, sem contatos culturalmente, que tenham desenvolvido religiões de verdades semelhantes!

História do homem é recente

Além da fé religiosa, podemos lembrar que existem coisas anticientíficas, às vezes originadas delas, como astrologia, bruxaria, colocar garrafas Pet em cima de relógio de luz, crença em mau olhado, ETs, abduções, vidraças deformadas, manchas de mofo em pães, sorte e azar, que persistem no homem comum. Independente da aceitação de verdades pelas religiões ou da importância para a adaptação da espécie na natureza. Viajando no interior, passa-se por inúmeras comunidades que não contam com escolas e postos de saúde, mas estão cheias de templos arrecadando recursos para benefícios duvidosos para a população!

Baseado em dados inconsistente, Okky defende que a religião foi o fator que determinou a sobrevivência do homem de Cro-Magnon! Eles organizavam-se em famílias, puniam o incesto, enterravam seus mortos, enfeitavam os túmulos, pintavam as paredes das cavernas por deleite estético e espiritual!… Simpático raciocínio, mas falso. Lembremos que o homem foi infanticida, canibal, aniquilava ritualisticamente seus prisioneiros, ou cidadãos escolhidos para isto, sacrificava vidas para obter cultivos, imolava em holocausto animais para divindades, jogava pessoas nos vulcões para aplacar sua ira, comia o coração das vítimas, tudo sem o menor sucesso ou relação para com o que se propunha.

Não podemos deixar de lado as incinerações em fogueiras dos hereges, guerras religiosas, torturas, noites de São Bartolomeu, cruzadas e mortandades sem fim, em nome da conversão pela espada (o que caracteriza as grandes religiões atuais, não pela verdade, mas pela intolerância que usaram), e as guerras sectárias modernas. O homem de Cro-Magnon, o único outro hominídeo além do Neanderthal, veio da África e não enfrentou a glaciação como os estes. As megaferas, seus contemporâneos, desapareceram também após a última glaciação, mostrando que algo na época ocorreu a mais do que crenças poderiam determinar. Dinossauros viveram na terra milhões de anos a mais sem precisar de crenças, e os crocodilos, insetos, aracnídeos, tartarugas e o celacanto sobreviveram a mais de uma grande extinção. Chimpanzés igualmente eliminam grupos mais fracos, mesmo sem possuir crenças.

O homem ainda é muito recente na história das espécies e seu sucesso em sobreviver ainda resta a ser provado. Uma bactéria é capaz de consumir o seu substrato até morrer, e um vírus, como o ebola, pode se multiplicar até acabar com sua vítima, perecendo junto. Não são provas de sucesso, mas de comportamentos no curto espaço de vida que leva à extinção mais acelerada. Não se pode até hoje descartar que a sucessão na Europa ao neanderthais tenha sido pela eliminação artificial dos mesmos. Assim como não se pode afirmar que não possuíssem crenças primitivas.

O exercício da intolerância

As crenças dos Cro-Mangons não possuem semelhanças com as atuais, pois eles deviam ser animistas, e não adeptos de revelações. Também não sabemos o quanto elas influíram no comportamento moral dos mesmos. Além, é claro, de que, como ocorre hoje, a religião separa os homens, antes de uni-los! Mas, certamente, o fator que levou os homens a sobrepujar as forças da natureza em busca de abrigos e alimentos foi a tecnologia, e não as crenças. É improvável que os sobreviventes do tsunami tenham sido poupados conforme suas crenças. As crenças não estimulam em nada o conhecimento real. Consideram um pecado tentar conhecer, saber os segredos do demiurgo!

É nisto que podemos perceber que a ciência ameaça a religião e as crenças, que são irracionais em bases falsas. Por isto, a religião sempre se opõe ao conhecimento, pois este sempre resulta em evidenciar a falsidade das alegações, independentemente de ter intenção disto. Assim como historicamente os detentores das verdades religiosas sempre mistificaram e falsificaram milagres para se aproveitar da credulidade, como as pitonisas ou oráculos. Desde a antiguidade que templo sempre foi dinheiro e fonte de poder terreno. Reis se submetiam para manter a ameaça dupla sobre os dominados. Sempre foi fonte de abundância na Terra para aqueles que viveram prometendo recompensas futuras para os crentes.

Um dos erros do texto é afirmar que o conceito de Deus surge em todas as sociedades humanas. O que não é verdade. O monoteísmo aparece com o povo escolhido por Deus para impor sua fé a ferro, fogo e genocídios. E, nas outras civilizações e povos, as idéias de deuses ou criadores não possuem relação com as crenças derivadas do judaísmo. Mas apresentam quase todas o exercício da intolerância em relação aos outros seres humanos que não comunguem com a mesma crença, mesmo que seja uma pequena divergência! Esta miscelânea de seres incríveis que habitam e habitaram o imaginário da humanidade mostra que a fé não é uma boa conselheira.

Seres extraordinários, bons ou maus, sempre tiveram lugar nas crenças, sem no entanto poder fornecer nem mesmo um grão de milho por isto! Sem a tecnologia da caça, não teriam abatido um mamute (desaparecido depois da última glaciação); sem tecnologia de roupas e moradias, não teriam resistido à glaciação, independente da fé e força espiritual que tivessem; sem a agricultura, não seria possível estabelecer-se e reunir grandes populações.

As questões científicas atuais

O que nos lembra outro erro do texto, ao atribuir a Darwin o embate entre crença e religião. Isso sempre ocorreu, e muito mais cedo, com Galileu. As perseguições religiosas aos que ousaram buscar o conhecimento dos fenômenos ocorreu ao longo de toda a história das religiões modernas, desde o judaísmo. Ao contrário de Galileu, Darwin apareceu depois da Revolução francesa!

Ciência e religião possuem campos completamente distintos. Por isso, é impossível imaginar alguma coisa absurda como ‘conciliação’! Não existe fé na ciência, a não ser naquilo que não se pode testar no momento de uma pesquisa. Mas, certamente, as bases em que a mesma está acreditada podem ser questionadas a qualquer momento, e muitas vezes o são, na história da ciência, passando-se a um novo entendimento.

É o que ocorreu com a visão de Newton da física. Nunca ela prometeu a palavra definitiva e nem a promessa de felicidade e vida após a morte para quem dela se utilizasse. No momento em que os fenômenos começam a não ser mais explicados, novas teorias são elaboradas e novas evidências são buscadas para comprovar sua plausibilidade. Nada comparável com o que a religião possa fazer ou busque. Cada lar pode ter uma religião, seita ou crença, mas em ciência só uma explicação pode ser a certa. Ou não se conhece a realidade. E não se sabendo, não se atinge o objetivo do conhecimento. Mas, em termos de fé, mesmo a crença mais absurda ou contrária à dos outros, ou a mais estapafúrdia, atinge o objetivo daquele que tem fé. Que é apenas crer.

Explodir-se e explodir um ônibus escolar cheio de crianças é um absurdo para quem não acredita, mas o homem-bomba acredita que está indo para o paraíso mesmo fazendo uma atrocidade deste tamanho! E disto se aproveitam grupos políticos usando esses tolos para atingir seus objetivos.

Não se justifica que jornalistas, em pleno século 21, ainda não saibam diferenciar uma coisa da outra e vivam a promover contatos que jamais poderão existir. Mas se isto ocorre em uma situação clara como esta, como poderá o jornalista trazer luz para as questões científicas atuais do aquecimento global, da preservação de estoques de alimentos, de manejo de florestas, dos cuidados da vida das plataformas continentais que não compreende?

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Médico, Porto Alegre, RS