Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Quem é a rainha, Elizabeth II ou Tony Blair?

A atriz Helen Mirren, protagonista do filme A Rainha, cujo tema central é o descaso da Coroa inglesa diante da morte da princesa Diana, esteve em São Paulo há cinco anos e ninguém se interessou por ela. Estava acompanhando o marido, Taylor Hackford, que vinha promover o lançamento de Prova de Vida, em que brilham Meg Ryan e Russell Crowe. Agora não adianta chorar sobre o leite derramado: a atriz estava ali à mão, no hall do hotel Crowne Plaza.

Não foi a primeira vez que Helen Mirren encarnou uma rainha. Já havia feito o papel de Elizabeth I numa minissérie de TV. A televisão deve ter sido paradoxalmente um bom laboratório para o este belo filme de Stephen Frears – a atriz parece a própria Elizabeth II. A TV e o cinema lhe deram duas vezes o prestigioso prêmio Globo de Ouro por viver magistralmente as duas rainhas.

Quando a Coroa inglesa resolve tratar com descaso a morte de Diana, desponta novo rei. É o primeiro-ministro, que vem em socorro da rainha, aconselhando-a a dar atenção ao grande evento que a mídia mostrava, lembrando-lhe que era necessário ver para além dos rigores da separação entre o público e o privado. Sim, Diana não tinha mais nada a ver com a monarquia, já que estava separada do príncipe Charles, mas Diana tinha tudo a ver com a monarquia porque, roubada de tantas coisas, não lhe podiam roubar a maternidade e ela continuava sendo a mãe do futuro rei inglês.

Moscas no açúcar

Lady Di, como era chamada, tinha uma concepção diferente do que vem a ser o poder. Ao contrário de Elizabeth I, tinha perfeita noção dos poderes e do alcance da mídia. Usou e foi usada pela mídia, pois a mídia cobra tudo o que noticia, como se sabe. Uma vez exposta a vida de alguém, é difícil, para não dizer impossível, a retirada. E o que mais a princesa Diana tinha para a mídia, a não ser mostrar-se no que era essencialmente diferente dos mandatários do palácio?

Sua extrema sensibilidade diante da mídia não pode ser confundida com os projetos humanitários que endossou. Será que ela faria o bem que fez ao mundo se estivesse obrigada a seguir o preceito evangélico ‘não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita'(com exceção dos canhotos, naturalmente, que devem inverter a ordem das mãos)? Não nos foi dado conferir, ela sempre fez tudo diante das câmeras. É evidente que para que repórteres, câmeras e cinegrafistas estejam a postos para informar tudo, providências devem ser tomadas nas redações e nos palácios…

Quem decidiu que Diana era a ‘princesa do povo’? A mídia! Mas como o fez? Terá escutado o povo ou impôs a ele o epíteto que a consagrou? A mídia tornou-se um dos poderes mais arrogantes do que qualquer ditador. Como sabemos, no Brasil ela já substituiu o Judiciário e tentou, sem sucesso, substituir o eleitor nas últimas eleições presidenciais. Escarmenta o Legislativo, anuncia em letras garrafais quanto ganha um deputado, um senador, um ministro de tribunais superiores, mas em nenhum momento usa os mesmos pesos e as mesmas medidas para avaliar quanto ganham os banqueiros. Por mais que seus salários sejam acrescidos de rendimentos indiretos, todos eles não passam de moscas no açucareiro: os grandes ganhos são outros.

La donna è mobile

O filme de Stephen Frears mostra um primeiro-ministro – que sabe ser passageiro o seu cargo, afinal senta-se na mesma poltrona em que sentou Churchill quando recebido em audiência pela rainha – preocupado com a sorte de Elizabeth II e sua insensibilidade política, que nele é aguçadíssima. Ele acaba de estrear no poder; ela está ali há meio século. Ele vai sair ao sabor das eleições. Ele passará; ela, não.

Mas este é também o grande engano da rainha. Na ânsia de cumprir o protocolo, de manter a tradição da Coroa, ela deixa de perceber que os tempos são outros. E nem aos monarcas é dado o direito de desprezar a História.

Quem faz o soberano ser amado? O povo. Quem faz o soberano ser odiado? O povo. Mas quem faz o povo amar ou odiar o soberano? No conjunto destas forças, a mídia exerce um papel decisivo, que aumenta a cada dia, mas que também tem seus limites.

A imprensa teve função decisiva na Revolução Francesa, que levou à decapitação do próprio rei e da própria rainha. Mas a guilhotina cortou com a mesma insensibilidade também outras cabeças, incluindo cabeças que lideraram a revolução.

Até então amada e admirada pelo povo, a rainha Elizabeth II sentiu profundamente que, semelhando o dito de que ‘la donna è mobile’, o povo também muda facilmente de opinião. Enfim, a boca que louva hoje pode ser a mesma que amanhã condena.

Quarto poder

O grande mérito da atriz principal do filme é este: ela inventa uma rainha que não existe. Ela não é a rainha, ela é a representação da rainha. Mas provavelmente nem a rainha pode ser tão verdadeira, mesmo porque nenhum de seus atos, agora representados, foi ensaiado: as decisões tiveram que ser tomadas no calor da hora. Sem diretor, sem roteirista, sem iluminador etc.

E principalmente com péssimos atores porque se a Coroa inglesa está cheia de canastrões, de gente arrogante que pensa que o mundo é governado por eles. O mundo é decorado por eles e isso faz toda a diferença. Ornamento não é poder. Ajuda a compor a solenidade, a coreografia, mas não é o poder, assim como não é o hábito que faz o monge, mas vê-lo com o hábito ajuda a entendê-lo. Mesmo os mais esquerdistas e contestadores dos frades no período pós-1964, quando saíam para as passeatas, abandonavam seus trajes civis e vestiam os hábitos. Já revelavam o que o olhar do povo prefere ver, consolidado em séculos.

A Rainha oferece oportunidade preciosa para que sejam discutidos a mídia e os outros poderes. A mídia era o quarto poder, mas talvez tenha deixado os bastidores e migrado para o proscênio, já que agora mostra tudo, mas para mostrar tudo tem também que se mostrar. E ela anda se escondendo… E talvez escondendo suas intenções, em muitos casos.

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Escritor, doutor em Letras pela USP, professor da Universidade Estácio de Sá, onde dirige o Instituto da Palavra; www.deonisio.com.br