Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma explicação pelo preconceito

Na primeira página de um excelente jornal de São Paulo, na edição de 31 de janeiro de 2007, lemos a seguinte notícia: ‘A polícia prendeu a cabeleireira Adriana Almeida, 29, viúva de Rennê Senna…’, e outra, na página C-5: ‘O corpo da estudante de direito Michele Guimarães Rocha, 26, que morreu…’. A mesma notícia lemos também na página B2 de um jornal de Campinas: ‘O corpo da estudante de direito Michele Guimarães Rocha, 26, foi reconhecido…’. Num jornal de São Paulo, temos ainda, na página C-5: ‘O pedreiro Antonio Aparecido Martins, 51, foi preso…’, e outra: ‘Depois de uma semana preso na carceragem da Polícia Federal de São Paulo, o juiz Nicolau dos Santos Neto, 78, conseguiu…’. Na mesma página, temos parte de outra notícia: ‘Já o biólogo Rodrigo de Almeida, 29, e o ecólogo Luís Coelho, 30, são…’

O que é estranho, e curioso, é a suposta informação da idade, com apenas um número entre vírgulas. Pois, além da idade, poderia estar qualquer outra medida numérica: peso, altura, colarinho, sutiã, ou qualquer coisa, já que não se especifica seu significado. Esse costume é muito difundido. Tanto pelos jornais que representam a melhor imprensa do país como por algumas importantes revistas. Até nos rodapés dos artigos assinados o nome do autor aparece seguido daquele indefinido número entre vírgulas. Por exemplo: ‘Ricardo Trípoli, 55, advogado…’; ou ‘Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, 62, frade dominicano…’; ou ‘Paulo Rabello de Castro, 58, doutor em economia…’. Se esse dado numérico é referência da idade, por que se omite a palavra ‘anos’?

É uma boa pergunta!

Voltando no tempo

Os usuários desse modo dizem que ele é comum nos Estados Unidos. Lá, só se faz assim. Até nos arquivos, nos cadastros, nos processos, a idade das pessoas se indica só com os algarismos correspondentes. É verdade! Mas, por quê?

Ora, vejamos. Se você pergunta a uma garota norte-americana: ‘Qual é a sua idade?’, ela responde: ‘Eu sou quinze’. A garota brasileira responderia à mesma pergunta dizendo: ‘Eu tenho quinze anos’. Para os norte-americanos, a idade é algo que você é. Para os brasileiros, a idade é algo que você tem. Então, a pergunta seguinte deve ser: por que adotar o modo norte-americano, que não é do nosso costume e, ademais, poderíamos considerar um erro de português?

Para entender essa troca, precisamos voltar no tempo, ir à década de 40 ou 50 (não tenho certeza) no Rio de Janeiro, e conhecer certo redator-chefe de um jornal de grande circulação cujo nome não nos confiaram por discrição. Ele era um homossexual enrustido. Não era assumido e franco, como os de hoje, estes de cabeça boa, mais avançados e livres de preconceitos.

A solução do problema

O sotaque carioca tem uma forma de pronunciar muito sonora, agradável, cheia de charme e simpatia. Entretanto, alguns sons se confundem, como nas palavras que têm final em L ou U. Por exemplo: em ‘fácil’, parece fáciu’, o que se explorou até na propaganda comercial: ‘Tomou doril, a dor sumiu.’ Aquele som chiado de algumas letras, herdado dos portugueses, também oferece algumas confusões. Por exemplo, ‘lista’ soa como ‘lichta’, ‘misto’ soa como ‘michto’. Esse sotaque é comum à maior parte dos brasileiros, no maior número de Estados. É correto e não tem inconvenientes; é até mais bonito. Porém, isso iguala a pronúncia de algumas palavras, como ‘anos’ e ‘ânus’; as duas soam algo como ‘ânuch’, com aquele som chiado no final. Por isso, toda vez que o nosso redator-chefe enrustido precisava escrever ou, principalmente, pronunciar a palavra ‘anos’, ele se encolhia, sentia-se mal, e sempre tentava fazer a substituição da palavra, ou de toda a frase, por outra expressão. O vocábulo ‘anos’ era terrível para ele que escondia sua opção sexual. Era preciso encontrar um meio de eliminá-lo definitivamente.

Numa de suas viagens aos Estados Unidos, ele conheceu o modo norte-americano. Teve um estalo! Um verdadeiro alívio! Era a solução. Para acabar com o uso da palavra incômoda, bastava adotar o sistema inglês. Por que não copiá-lo? Não é hábito nosso imitar os norte-americanos em tudo? Eles são superiores, avançados, e sempre nos dão o tom. Ele riu sozinho, satisfeito. O problema estava resolvido. Determinou que todos os seus redatores utilizassem o modo norte-americano, mais simples, mais prático, tornando desnecessária a repetição maçante da palavra ‘anos’ em tudo o que se referisse a pessoas. Houve algumas resistências individuais, mas a sistemática teve que ser adotada, com ou sem o acordo dos que escreviam.

Estabelecendo um paradigma

Posteriormente, outros jornais e revistas adotaram a novidade, pois é costume entre os jornalistas imitar sempre o que parece mais novo e moderno. As formas e modalidades se transmitem pelo efeito demonstração e não se pergunta por que se está copiando alguma coisa. Parece bem, então está bem!

Hoje, muitos ainda escrevem, por exemplo, ’40 anos’. Mas a maioria se entregou ao método novo, sem questionar sua origem. Com isso continuam, talvez inconscientemente, a contribuir para a manutenção de um preconceito que não se justifica mais e já deveria estar extinto.

Há muitas formas de se estabelecer um paradigma.

Às vezes, as mais infelizes!

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Contador, professor e administrador de empresas aposentado, Valinhos, SP