Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A “personalidade do ano” é sui generis

A “icônica e sempre tão esperada capa da personalidade do ano” da “influente” revista Time em 2011 leva os ditos: “The Protester”, o manifestante, e a imagem de um inominado personagem, desta vez, uma ilustração andrógina. A figura do “manifestante” foi escolhida pela revista como a personalidade do ano. Sui generis, o manifestante, no entanto, refere-se a todas as mulheres e homens que foram às ruas protestar contra todo tipo de opressão, “da Primavera Árabe a Atenas, do Ocupe Wall Street a Moscou”, explica a chamada de cobertura. Louvável tentativa de homenagear a todos os que lutam por justiça e igualdade, indiscriminadamente. A capa apresenta um desenho sem gênero definido, remetendo a muitos na multidão em favor da democracia, conforme mencionado pelo editor da revista, Richard Stengel (“Why Time Chose ‘The Protester’”, revista Time, dez. 2011).

A pluralidade dos manifestantes, no entanto, parece contrastar com os signos visuais interessantemente tendenciosos da ilustração. Será um gorro, um pano ou um chapéu, o que o/a manifestante leva na cabeça? Será um lenço que dificulta sua identificação, ou uma clara conotação do véu, niqab, jihab, burca e outras vestimentas usadas pelas mulheres islâmicas?

A mensagem visual é dúbia, porém reticente. Muda-se o fato jornalístico, contudo, as bipartições entre as classes, Ocidente e Oriente, religião e Estado, fundamentalismo e liberdade, no entanto, são demasiadamente abordadas pela mídia de maneira totalitária.

Estranhamento entre mundos

A menção da Time foi criada em 1927, com o título de “Homem do Ano” e, somente em 1999, foi devidamente atualizada para “Personalidade do Ano”. O objetivo é geralmente o de escolher um indivíduo que tenha desenvolvido papel definitivo em um acontecimento importante. Em 2011 a massa destacou-se na capa da Time. Como em tantas outras revoluções, mulheres e homens tomaram as ruas para interceder pelos direitos universais. É impossível, porém, determinar um rosto.

A matéria principal apresenta, no entanto, alguns dos personagens de movimentos populares que em 2011 transformaram a história. “My son set himself on fire for dignity”, disse Mannoubia Bouazizi, a mãe de um mártir, em entrevista a Kurt Andersen, da Time. Anônima, porém, ela deixou de ser quando seu filho, Mohammad Bouazizi, o jovem vendedor de frutas e legumes tunisiano, ateou fogo ao próprio corpo para protestar contra as humilhações de policiais e a indiferença das autoridades.

No texto, Andersen considera que aqueles que protestam são os que fazem história. O fato jornalístico do ano tem na face indefinível uma multidão sem rosto. Mas a ilustração da matéria principal é dada por um retrato, quase uma fotografia de identificação, como as que encontramos em passaportes. A imagem da mãe sofredora, olhos azuis tristes envoltos em um tecido rosado. Serena imagem. Perfeito contraste à do filho em chamas, aquele que tentou queimar também a opressão do mundo.

A matéria mostra como o drama particular de uma família tornou-se prelúdio de uma revolução. Quando o privado se torna público, as formas abissais de opressão vêm à tona. O estranhamento não é apenas o do leitor com a imagem da mãe do mártir, mas é também o estranhamento entre os mundos ocidental e árabe, entre o universo masculino e o feminino, entre os líderes e o povo.

Estratificação ideológica

A imagem chama para o texto e para tentar entender porque essa senhora com ar devastado seria uma das personalidades do ano. De véu, a personagem é islâmica, portanto, na perspectiva do leitor “ocidentalizado” mais passageiro, uma mulher sofredora. Uma isca visual. A grande imprensa internacional se utiliza quase que invariavelmente de imagens padronizadas, a fim de “facilitar a compreensão”. A fotografia de Mannoubia, por exemplo, é o corpo escondido na cena pública. A mãe-mulher, a madona, amável protetora de seus filhos, a progenitora santificada pela expiação da dor que vêm a público quando a imprensa trata de um dos temas mais reportados em toda sua história: o espaço de conflito.

A utilização de determinados modelos cristalizados favorece a representação estereotipada da mulher em uma sociedade culturalmente dominada pelo homem. A imagem atua como elemento de estratificação ideológica da mídia que, cada vez mais, apresenta o corpo feminino com funções de alegoria e mercadoria. A mensagem ideológica presente em um grupo de fotografias jornalísticas, portanto com base no referente real, levam a crer que não existem outras mulheres, ou ainda, levam ao leitor a conceber uma ideia limitada dos perfis femininos possíveis.

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[Dulce Mazer é jornalista e professora universitária, Londrina, PR]