Nesta manhã, em que minha caixa postal é invadida por mensagens que retratam uma indignação em massa diante de um crime bárbaro – a morte de uma criança arrastada por assaltantes pelas ruas do Rio de Janeiro – não posso deixar de analisar, mais uma vez, a responsabilidade do jornalista e, especialmente, da mídia enquanto instituição, na transformação do fato em notícia.
A violência choca a todos, insistem alguns comentaristas de plantão, respaldados por entrevistas de populares que preferem não mostrar o rosto. O que, efetivamente, já não é verdade.
Lágrimas para a câmera
A rotina e a freqüência banalizam as mortes violentas e, para muitos, alguém morrer tentando proteger idosos e crianças na linha de fogo de um tiroteio em via pública, ou soterrado por toneladas de terra num buraco do metrô quando vai para casa, ou covardemente queimado enquanto dorme sob uma marquise, é tão natural como escovar os dentes ao se levantar. Num cenário de guerra, entre um cessar-fogo e outro, cadáveres espalhados pelas ruas não impedem as crianças de brincar nem adultos de irem para o trabalho ou à padaria buscar leite. É assim em Bagdá, é assim em Porto Príncipe, é assim nos subúrbios cariocas ou na periferia da Grande São Paulo e outras cidades brasileiras. A violência se incorpora ao cotidiano das pessoas e, facilmente, todos se adaptam ou se acostumam com ela.
As manchetes dos jornais e a voz grave dos apresentadores de telejornais, a tensão ou a comoção dos repórteres de rádio e tevê é que, de repente, tentam nos fazer perceber que o limite do aceitável, do comum, do natural, pode ter sido ultrapassado. A persistência da imprensa em retomar a notícia na manhã seguinte, a suíte no telejornal da noite, a reportagem especial no fim de semana, ou os especialistas que discutem o tema nos programas de auditório dominicais, parecem tentar fazer com que a opinião pública – esse ser informe e intangível – se manifeste, levante bandeiras, reze missas, faça abaixo-assinados, crie mais uma ONG ou verta discretas lágrimas diante das câmeras de fotógrafos e cinegrafistas (atenção para o zoom).
Voz embargada, expressões sombrias
Tudo isso é realmente necessário? Dependemos de que haja sempre todo esse esforço da mídia para que nos indignemos com a violência, com a injustiça, com a corrupção, com a impunidade, com a intolerância? E será esse o papel da mídia, o de prover o indivíduo – ou a massa – de princípios éticos e morais que parecem estar se perdendo no tempo e que, no fundo, alimentam um sistema em que escola, família e governo se omitem em suas atribuições específicas? Não estariam – escola e família – formando indivíduos desprovidos de valores morais e senso crítico e que, por isso, alçam ao poder governantes de igual teor e forma, sem competência ou responsabilidade no trato das questões sociais?
Talvez seja utópico pensar assim (como o é também, sei, pensar na existência de uma imprensa livre), mas gostaria de ver uma imprensa que informasse e analisasse os fatos sem tentar influenciar consciências e atitudes. Sem assumir papéis que não lhe competem. Sem locutores de voz embargada e expressões sombrias ao noticiar um assassinato que lhes parece mais cruel que outro. Que guardasse o slow motion para os tira-teimas do atletismo ou do futebol e as melancólicas trilhas sonoras para suas novelas e filmes. Ou, em pouco tempo, toda cobertura jornalística se confundirá com as clássicas rivalidades entre boxeadores, artificialmente acirradas pelos promotores do espetáculo com a conivência da mídia, só para inflar bilheterias, audiência e verbas publicitárias.
A violência e a mídia têm me deixado igualmente indignado. E já faz muito tempo.
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Jornalista e escritor, Belo Horizonte, MG