Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Folia da mesmice e da jogatina

É provável que um olhar mais exigente dirigido à observação da realidade possa permitir a seguinte dedução: ou a mídia não sabe o que fazer com a cobertura do carnaval, ou decididamente o carnaval não é um acontecimento capturável pela mídia.

Ano após ano, repete-se um leque de clichês somente justificado por uma das duas opções formuladas. É claro que aqui não se vai cobrar maior exigência de quem quer que seja, a respeito de um intervalo de tempo no qual o direito ao delírio e ao devaneio está previsto pelo calendário oficial. Por outro lado, já que o sistema midiático, sempre atento às faturas, tanto se mobiliza para o ‘grande espetáculo da terra’, por que não investe em inovações e angulações temáticas mais atraentes? Não, ousadia é algo que parece proibido na mídia nacional. Como conseqüência, a mídia retira do baú mofado o ‘pacote’ anual.

Narrativa e descontinuidade

Não vamos imaginar que editores de jornais e revistas, diretores de TV e afins sejam requintados leitores de Jean-François Lyotard, menos ainda de Michel Foucault. Todavia, há o risco de, em algum momento de suas vidas, haverem esbarrado com alguma página – ou, quem sabe, algum comentário de orelhada – e terem tomado ciência de que Lyotard destaca, como um dos principais aspectos do ‘pós-moderno’, a ‘morte das grandes narrativas’. De igual modo, de Foucault souberam do conceito de ‘descontinuidade histórica’. Somados os dois conceitos a um terceiro – o da ‘desconstrução’, proposto por Jacques Derrida –, os ‘cérebros midiáticos’ saíram por aí aplicando-os. O resultado é nada além de um caótico estado de torpor e de assimetrias a multiplicarem distúrbios cognitivos e perceptivos.

Sapucaí é Globo e Salvador é Band

Tratemos inicialmente dos desfiles. Está cabalmente comprovado que desfile de escola de samba e TV não combinam.

Adotando o modo de filmagem linear, ou seja, exibir para o telespectador o que exatamente está sendo visto pela platéia, cria-se insuportável estado de monotonia. O que se ganha na construção do sentido, perde-se na falta de mobilidade e dinamicidade. Optando pelo padrão da descontinuidade, a ‘editite’ produz verdadeira poluição visual que, somada a cortes e planos alternados, inviabiliza a rede de significados presente em cada enredo.

Tudo ainda é agravado pela capacidade de escolherem ‘comentadores’ ou ‘analistas’ que, quando dominam o código lingüístico, deixam expostas as fragilidades de conhecimento. E, quando falta o elementar – o domínio do código –, o estrago é completo. Em qualquer das opções, o resultado fica aquém do sofrível, suportado por um público destituído de maiores exigências ou de outras alternativas. Desfile via TV, em última análise, significa a anulação da narratividade, o culto ao descontínuo e a celebração da desconstrução do sentido.

De ano para ano, é visível a progressiva invasão de ‘globais’ nas escolas de samba, ora como destaques, ora como temas de enredo. O desfile de 2004 não deixa dúvidas a respeito. Somando avenida a camarotes, o elenco global estava em todas. A impressão que fica é a de que a TV cobre o carnaval da TV. É um sistema de retroalimentação. ‘Darlenes’ e ‘Jaquelines’ promovem a perfeita sintonia entre a ficção da novela Celebridade e o real mágico da ‘passarela’, segundo alguns, ‘do samba’.

Saindo da Globo e indo para a Band, cai-se na armadilha da cobertura frenética dos sempre idênticos e barulhentos trios elétricos da Bahia. Tentam, a todo custo, convencer que carnaval mesmo são as cordilheiras humanas que integram a procissão esquizofrênica, atrás dos caminhões de ‘celebridades’, sempre expostas no ponto mais alto, invocando os ‘gritos de guerra’ para milhares de celerados que, embaixo, disputam centímetros de asfalto, após haverem gastado salgadas quantias. Bem, e as entrevistas? São peças raras de futilidades, inutilidades e marketing.

Ficção ou realidade?

A pobreza das coberturas – sempre com grande aparato técnico e gigantismo de recursos – é de tal ordem que qualquer tema assume ares de importância inadiável. Por exemplo, a quem pode interessar a separação de Luma de Oliveira, afora as pessoas diretamente envolvidas? A julgar pelas dezenas de matérias e comentários a respeito, tem de se concluir que se trata de um caso nacional. Afinal de contas, como cobrir carnaval sem Luma no noticiário? Num ano, vira manchete pelo uso de uma coleira; noutro, é a exuberante madrinha da bateria. E, quando uma gravidez a retira das pistas, por que não a separação? O importante é sempre noticiar. E por aí vai…

Nada, porém, superou o tratamento dado pelo jornal O Globo que, em sua edição de 1/3/04, abriu, como matéria central, a bombástica revelação: ‘Luma: ‘Minha gravidez foi uma farsa’’. Não vamos entrar no mérito do fato que, na verdade, diz respeito a sofrimentos humanos. O que importa aqui enfocar é o modo jornalístico de tratar o problema.

Convenhamos: o jornal em questão tem uma responsabilidade histórica na qual esse tipo de notícia em nada o enobrece. Esse é o problema de empresas de comunicação que, no Brasil, acumulam variadas ramificações nas quais televisão, jornal, revista e rádio se vão intercambiando, a ponto de perder-se o referencial do que cabe a cada um abordar. É mais um exemplo de retroalimentação.

A matéria jornalística em torno da separação, somada à mentira da gravidez, se converte em trama de novela, o que está reforçado pelo suporte visual (a foto que acompanhava a manchete). É bom que se repense no Brasil o papel do jornalismo.

E a jogatina?

Enquanto boa parte do país requebrou no acalorado ritmo de Momo, outra, de acordo com noticiários, se desdobrou em articulações para os próximos embates no horizonte político. A cobertura midiática ficou dividida entre bombásticos atos governamentais, como estampou a edição do Globo (‘Escândalo leva Lula a proibir bingos’, 21/2/04) e rescaldos da condução da política econômica, a exemplo da manchete do Jornal do Brasil (‘Economia está em curto-circuito’, 28/02/04).

Outras edições, na mesma data, não foram diferentes: na Folha de S. Paulo, a chamada era ‘Economia encolhe no 1ano de Lula’; no Globo, a manchete ‘PIB do primeiro ano de Lula é o pior desde 1992’. Os temas ainda sofrerão desdobramentos com o reinício das atividades no Congresso. ‘Caso Waldomiro’, ‘reforma política’ e ‘denúncias’ devem pautar jornais e revistas. O que se pode extrair do até então publicado é a face um tanto melancólica de um país dividido ente o frenesi de uma ‘alegria nervosa’ dos foliões e depoimentos de inúmeras pessoas em estado desolador, produto do fechamento de casas de jogo. São duas cenas que, pelo antagonismo, chocam e, ao mesmo tempo, traduzem os batimentos vitais de expressivo contingente da população. Ambas estão unidas por algo que parece ser o descaminho das vidas.

É preocupante pensar que amplos segmentos da classe média brasileira sentem suas vidas frontalmente atingidas pela medida governamental. Principalmente em telejornais, foram constantes depoimentos de pessoas idosas, algumas quase em lágrimas, acusando a perda do que era razão de suas vidas.

Algo na cultura da nação saiu dos trilhos e é grave. A juventude seduzida pelas drogas e a terceira idade imersa na jogatina. Alguém dirá que esse retrato tem tom alarmista. Que seja! Por trás do alarmismo pode estar o perfil de uma sintomatologia a acusar o tecido fragilizado de uma população que não sabe o que fazer com o presente, o que esboçar como futuro e, destituída de instrumentos, como aprender com o passado. No mais, espera-se que o governo não se queira tornar, além do que, há décadas, tem sido, o grande e único patrocinador da rentável e apetitosa ‘banca’ de apostas, cuja característica é não exigir nenhum esforço de inteligência.

O combate à jogatina não deve ser travado em bases morais – isso, o governo do general Eurico Gaspar Dutra, no século passado (1946-1950), já o fez. O combate desejável deve ser travado em níveis culturais. Para tanto, o governo haveria de ser o primeiro a retirar de suas receitas aquilo que, na fonte, se origina do fascínio pela ‘sorte’, fruto direto da miséria econômica e da pobreza cultural.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro