Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Software livre, mídia e opiniões – Parte 3

A lei brasileira sobre propriedade industrial é clara em relação à patenteabilidade de algoritmos (patentes de software). Se o setor em foco for o de software, a situação é a seguinte: a lei brasileira veda a concessão de patentes a algoritmos exceto se sua expressão em software destinar-se ao controle de algum processo industrial específico, no qual este processo seja o objeto principal da mesma proteção patentária. Softwares que controlam processos semiológicos, e não industriais, ou seja, softwares destinados a rodar com e para outros softwares ou usuários, em computadores ou hardwares genéricos, alcançam, como obra intelectual, apenas a proteção do direito autoral no ordenamento jurídico vigente no Brasil.

Em outras palavras: dentro do segmento de softwares explorados comercialmente, exportáveis e elegíveis alhures à proteção patentária, aqueles destinados a computadores ou hardwares genéricos, estão fora do alcance da proteção patentária no Brasil. Sejam eles livres ou proprietários. Proponho rotularmos este segmento de "comercial", para distingui-lo de um complemento seu bem menor no mercado, o dos softwares protegíveis por patentes no Brasil, que chamaríamos de "industrial". As partições livre-proprietário e comercial-industrial são portanto independentes, e a pergunta retórica neste particular ganha melhor foco. Em poucas palavras, uma coisa nada tem a ver com a outra. É só retórica (ou FUD). Agora, a mesma pergunta em sentido geral.

É fato que quem produz, distribui e negocia com software livre o faz, via de regra e em qualquer jurisdição, sem proteções patentárias. Portanto, é possível, inclusive no Brasil, trabalhar nesse setor sem esse tipo de proteção, inclusive exportando consultoria e serviços, haja vista existirem empresas que ganham dinheiro com software livre. Tal qual besouros. Inclusive no Brasil a Conectiva, maior distribuidora GNU/Linux da América Latina, para não falar de pesos pesados entre as maiores empresas de TI do mundo, que sabem e querem trabalhar com ambos os modelos (IBM, HP etc.). No modelo livre, uma empresa não precisa ser autora ou "proprietária" do software – enquanto espécie – para com ele negociar licitamente. Suas atividades estarão suficientemente amparadas pelo direito autoral, pela licença e pelos códigos civil e comercial.

Em mais detalhes: para ganhar dinheiro com software livre, do qual não é o autor integral, basta ao empreendimento saber explorar a cessão de direitos com que os componentes de autoria alheia são publicamente distribuídos, além de conhecer seu código-fonte o suficiente para ter o que agregar-lhe de valor semiológico, de sorte a justificar o valor econômico do que vende. E mesmo não sendo autor de um programa com o qual se trabalhe, pode-se contentar em ser dois terços seu proprietário, pois só a disponibilidade estará restrita. O empreendimento só não poderá disponibilizar trabalho dali derivado se a licença for incompatível com a original. Por sua vez, cada usuário se torna – ao contrário do modelo proprietário – 100% proprietário (mas não autor!) do seu espécime do programa, já que a licença copyleft lhe outorga direitos de posse, usufruto e disponibilidade irrestritas sobre o mesmo.

Aliás, é possível trabalhar sem proteção patentária da mesma forma que se vinha trabalhando, em todo o mundo e com qualquer tipo de licença de software, durante os primeiros dois terços da história da informática. Ineficiências? A internet foi constituída por padrões abertos, opera por meio de softwares na grande maioria livres, poderia perfeitamente hoje operar só com softwares livres como nos primórdios, tudo isso sem nenhuma proteção patentária. De novo os besouros. Os grandes avanços na ciência da computação ocorreram, em sua imensa maioria, enquanto o conhecimento nela produzido ainda era considerado científico, abarcado na tradição como cultura e portanto bem comum, antes que lobistas e advogados da PI "forte" descobrissem a fórmula para o ouro alquímico da era digital.

Legalês e sigilo

Quem trabalha com software livre acreditando na sua filosofia não cobiça a proteção patentária: ao contrário, dispensa-a e evita-a. A filosofia do software livre recomenda que o autor evite codificar algoritmos com proteção patentária vigente, em qualquer código-fonte a ser licenciado sob copyleft. E vai além. Recomenda que o autor evite contaminar seu conhecimento deitando a vista sobre código-fonte proprietário ou protegido por patentes. Por que a paranóia? Certamente o problema não está no fato de a patente proteger direitos de exploração comercial, já que o regime copyleft não se opõe a isso, como poderá constatar quem se dê ao trabalho de ler a licença GPL.

O problema está na radicalizção ideológica do conceito de PI. A essência da radicalização promovida pela ideologia da PI "forte" – a corrida pela proprietarização de idéias, no sentido jurídico e não cognitivo – e o jogo sujo que promove com os poderes econômico e político. Esse jogo é entendido, pela filosofia do software livre, como muito desconfortavelmente próximo de metáforas sombrias. Se o jogo com patentes de software fosse limpo, como supõe a ideologia fundamentalista de mercado, o movimento do software livre poderia simplesmente continuar dispensando a proteção patentária, e seguir seu rumo. Mas o jogo é sujo, e cada vez mais parecido com uma forma de terrorismo que age na esfera econômica.

Como saber se a idéia para escrever um trecho de programa poderia ser interpretada por um juiz como propriedade alheia, com escritura nalguma bula lavrada em hermético dialeto legalês, em uma das mais de 100 mil patentes de software registradas nos escritórios de patente do Primeiro Mundo, ou numa das centenas de milhares que tramitam em sigilo, e que terão efeito retroativo à data de submissão, se concedidas? Um caso recente e emblemático desse jogo foi protagonizado por Leon Stambler, contado por Bruce Schneier em sua revista eletrônica Chrypto-gram de 15 de março de 2004 (http://www.counterpane.com/).

Munido de duas patentes sobre protocolos de autenticação digitais, Stambler vinha extorquindo empresas que comercializam software para segurança na informática. A análise técnico-jurídica das centenas de páginas de suas patentes custaria às vítimas mais caro do que as centenas de milhares de dólares que ele pedia, em troca da suspensão das ameaças. Mas quando Stambler ameaçou a RSA, a maior empresa de criptografia do mundo, por suposta violação das suas patentes no protocolo SSL, a vítima resolveu trucar. A RSA havia submetido seis patentes do SSL em 1994 nos EUA, que foram concedidas em 1997, enquanto as de Stambler haviam sido submetidas em 1992 e concedidas em 1999.

Advogados e barreiras

Como já dito, essas patentes são retroativas à data de submissão, apesar do processo transcorrer em sigilo. Quem submete o pedido é obrigado a divulgar apenas um resumo do pedido, que não pode ser modificado durante o trâmite da concessão. Stambler explorou uma faceta radical do processo patentário na jurisdição norte-americana, que permite que o pedido de patente em si possa ser modificado enquanto tramita, requerendo nova análise – sigilosa – a cada revisão. É a chamada patente "submarino". Leo Stambler teve sete anos para cozinhar iterativamente suas centenas de páginas de legalês em sigilo, enquanto descobria as idéias que a RSA e outras empresas vinham implementando em softwares, e que poderiam se encaixar no resumo genérico do seu pedido de patente.

Se Stambler teve ou não teve que gastar mais de U$ 20 mil para cada revisão, dinheiro muito bem recebido pelo USPTO (escritório de marcas e patentes dos EUA), isso não vem ao caso. O absurdo nisso tudo é que a RSA provavelmente não conseguirá reaver o que gastou para enfrentar Stambler nos tribunais, o que corresponde a mais do que gastaria se aceitasse ser extorquida, e ainda, beneficiando suas concorrentes, que deixarão de ser extorquidas depois de desmarmado o golpe de Stambler.

Embora o caso Stambler vs. RSA possa parecer isolado, não é. Existem muitas empresas de software hoje que só empregam advogados, que só fazem administrar carteiras de patentes, que só servem para criar barreiras artificiais à entrada de novos concorrentes no mercado de software proprietário.

Patente da roda

Cerca de metade das patentes de software que caem no foco de contenciosos jurídicos não resiste ao escrutínio do processo de litígio, acabando invalidada por algum vício no processo de concessão. O que não deveria espantar ninguém, pois o vício não está no processo, e sim no conceito. Afinal, como pode o USPTO, ou qualquer outro escritório equivalente no Primeiro Mundo, arrogar para si a onisciência sobre todas as idéias que porventura já tenham sido antes expressas em algum programa de computador, ou neles aproveitáveis, ao declarar, por meio da concessão de uma patente de software, inédita, uma idéia semiológica que tenha lhe sido descrita em hermético legalês?

Há um caso ainda não resolvido de ineditismo flagrantemente fraudulento numa patente concedida à Test Central Inc., empresa que vem com ela extorquindo, à la Stambler, instituições educacionais que implementam mecanismos de avaliação à distância [9]. Porém, o caso mais hilário é o da chamada "fat lines patent", uma patente obtida pela IBM para um processo de plotagem interpolante de gráficos na tela do computador, descrito por Euclides há mais de 2.300 anos na sua obra Elementos, o primeiro livro de matemática herdado por nossa cultura ocidental. "Mas a proteção patentária é só por 20 anos", sofismam os ideólogos da PI "forte". Puro FUD. Expirada a "fat lines patent", basta reeditar a mesma idéia de Euclides em outro dialeto legalês: o caso descrito em seguida entrega o jogo.

Para mostrar a insanidade da radicalização promovida pela ideologia da PI "forte", um advogado australiano pediu recentemente o registro de patente do seu invento, que, depois de concedida, anunciou ele tratar-se da patente da roda. De fato, depois da dica, as quase 100 páginas de legalês no seu pedido de patente parecem mesmo estar descrevendo a idéia da roda. [5]. "Mas isso invalida a patente!", desculpa-se a autoridade australiana que havia concedido a patente, enquanto acusa o advogado de má fé. Seja má ou boa a fé do advogado australiano, qual seria a moralidade da fé de muitos outros casos, esses bilionários, como por exemplo o caso SCO vs. IBM?

Política com p maiúsculo

Idéias ganham valor quando compartilhadas, não quando possuídas. Trata-se de valor semiológico, seu verdadeiro valor intrínseco. Algoritmos são, por sua vez, idéias cujo valor é puramente semiológico. Economistas e advogados que crêem ter descoberto a fórmula alquímica para transformar títulos de propriedade de idéias semiológicas em rios de dinheiro, mas que não sabem o que é semiologia, poderão ter surpresas desagradáveis com seus cadinhos. Por acaso os bits fazem no chip alguma coisa que não possa fazer o lápis no papel, não importa quão devagar comparativamente? O que há de novo sob o Sol no que tange à gerência de filas, de arquivos e de recursos, com o advento dos sistemas operacionais, além da linguagem e dos parâmetros? O esquema de pirâmide da PI "forte" pode derreter a cera nas asas fundamentalistas do Ícaro pós-moderno, justamente quando o paraíso consumista estiver a um átimo.

Quem abraça a causa do software livre, mesmo sabendo que o mundo é capitalista, não se sente seduzido por esse bonde celestial do neocapitalismo. Encanta-se mais com besouros. Uma política industrial que favoreça a produção de software livre serve para incentivar quem saiba, ou queira e planeje ganhar dinheiro com o modelo livre. Não é para obrigar ninguém a aderir ao modelo, muito menos quem se deixa dominar por temor irracional do que ele representa.

Quem vê o mundo em atitude de respeito pela vida, e com olhos dignificantes do humano, está convencido de que todos merecem uma oportunidade de mudança de rumo, pela chance de que seja para melhor. Algo que não ocorre sem reorientação de valores, o que se chama Política (com p maiúsculo: policy). Bem diferente de política com p minúsculo (politics), arte do más de lo mismo, da qual estão nos fartando.

A culpa é do besouro

** Más de lo mismo I – O Brasil gasta hoje mais de U$ 1 bilhão em licenciamento de software proprietário, e exporta U$ 160 bilhões, depois de anos de investimento no programa Softex, de incentivo a essas exportações. Alguém decide que o Brasil precisa exportar mais software, como faz a Índia. Há que se ter uma política industrial alocando ainda mais recursos, para "fortalecer" a indústria nacional de software. Outros afirmam que sim, mas sem qualquer mudança de rumo, o que seria temerário porque, dentre outros motivos, "significaria alijar o Brasil do maior mercado consumidor do mundo – que são os usuários da plataforma Microsoft."

Traduzindo: por um ralo iriam 2 x 1 = U$ 2 bilhões anuais em licenças proprietárias, para, quem sabe, pelo cano entrarem uns 2 x 160 = U$ 320 milhões. De -840 para -1.680. E a Índia? O que ela exporta em software hoje, e aos montes, é mão-de-obra que se compromete com o sigilo do seu próprio trabalho intelectual, cede o direito autoral do que faz, enquanto morre o fruto do conhecimento da propriedade intelectual alheia (o seu próprio trabalho). Caem, assim, sob a eterna danação do pecado original pós-moderno: se algum dia desenvolverem seus próprios programas, estarão manchados pelo pecado da pirataria, por fazerem trabalho derivativo da propriedade intelectual alheia!

O governo da Índia se manca, e abraça, para si, o software livre.

** Más de lo mismo II – O risco que representa o monopólio da Microsoft se torna consenso. Alguém lembra que o Brasil precisa se lembrar que existe uma coisa chamada soberania, essa coisa de essência que a Revolução Francesa transferiu da linhagem real para a res publica. Sugere ao Brasil usá-la para dizer ao mercado o que ele, Brasil, entende por software, e como quer contratar os softwares dos quais precisa. Mas aí vem um outro e diz que, com essa coisa chamada mercado, há que se falar na linguagem dela. E que ela não sabe o que é soberania alheia.

Então, juntam-se fontes especialistas, lêem alguns tratados alquímicos de economistas monetaristas e, depois de alguns exercícios mentais, alcança-se uma visão messiânica, onde a luz aparece ao fim do túnel:




"O caminho mais adequado seria combater a empresa no campo do direito econômico. O episódio da UE, de aplicar uma multa bilionária à Microsoft, é fundamental. (…) Tratar os produtos da Microsoft como utilities. Ou seja, reconhece-se que, por fundamental e monopolista, não se pode deixá-los subordinados às leis de mercado… Os produtos teriam os preços monitorados, com margens reguladas de lucro… Mas esse caminho teria que ser procurado no campo do direito internacional."

Não sei se entendo, mas vou tentar traduzir: nessa visão, o rato-governo sairia da toca para pendurar o sino no pescoço do gato-monopólio. O rato que está mais encrencado com os agiotas globais, que manipulam juros com seus índices de confiança, no gato que amealhou a maior riqueza no menor tempo, em toda a história do capitalismo. E o modelo livre? Nessa visão, sua adoção aparece como uma atitude temerária, com profundos desdobramentos negativos. O rato estaria cometendo uma loucura se trocasse o sino pela liberdade.

A culpa, meu caro leitor, não é da atual política governamental para TICs. É dos besouros, que não deveriam voar. Quanto à política, essa é com p maiúsculo. [Continua em PRÓXIMO TEXTO]

 

Referências bibliográficas

[1] Rezende, Pedro A. D.: "Governo, iInformática, conhecimento: quais as relações possíveis?" (Semana do Software Livre no Legislativo, Congresso Nacional, agosto de 2003)

http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/trabs/ssl_senado.htm

[2] Idem, "O caso SCO x IBM"

http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/trabs/fisl2003.htm

[3] Idem, "A GPL é compatível com as leis brasileiras?"

http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/trabs/debate_sl.html#comp

[4] Idem, "Bruxos pós-modernos e a neo Inquisição"

http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/trabs/beting.htm

[5] CNN World: "Man seeks square deal, patents wheel"

http://edition.cnn.com/2001/WORLD/asiapcf/auspac/07/02/australia.wheel

[6] Meira, Silvio: "Software aberto à francesa"

http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/trabs/francesa.htm

[7] Duarte-Plon, Leneide: "A mídia segundo o filósofo"

http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=272TVQ001

[8] Sfez, Lucien: "As tecnologias do espírito", em Para navegar no século 21, Ed. Francisco M. Martins, EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999

[9] Carnevale, Dan: "Company Claims to Own Online Testing", Politech list

http://politechbot.com/pipermail/politech/2004-March/000555.html

[10] "Ação contra Nelson Jobim", Correio Braziliense, 10 de outubro de 2003, pp. 6.

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ATC PhD em Matemática Aplicada pela Universidade de Berkeley, professor de Ciência da Computação da Universidade de Brasília (UnB), coordenador do programa de Extensão Universitária em Criptografia e Segurança Computacional da UnB, representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira. Site: http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/sd.htm