Conheci há tempos o francês que presidia a Fundação Fredrik Rosing Bull, cujo nome homenageia um talentoso engenheiro norueguês que nasceu em 1882 e foi pioneiro no desenvolvimento tecnológico da Europa. Essa fundação foi criada pela Bull, empresa também batizada em homenagem a esse engenheiro, líder francesa do desenvolvimento da tecnologia digital, que atualmente, como Groupe Bull, atua em uma centena de países, inclusive o Brasil.
Na minha conversa com o presidente dessa Fundação – que estuda as consequências econômicas, sociais e humanas do emprego generalizado da informática – surpreendi-me quando ele disse que sua entidade era contrária à identificação das pessoas, pelo Estado, com um número único para cada indivíduo (RG, CPF, carteira de motorista, título de eleitor etc., todos com o mesmo número), coisa que, na minha santa ignorância, parecia lógica, eficiente, racional e facilitadora da vida das pessoas.
Essa conversa e a minha ignara perplexidade aconteceram há quarenta anos.
Dando um fast-forward para os dias de hoje, acabo de ler um livro assustador (infelizmente ainda não publicado em português) que me recordou esse episódio. Chama-se Dying Light, do jornalista inglês Henry Porter, que vem-se dedicando à luta pelos direitos humanos, liberdades civis e de expressão na Grã Bretanha. (Originalmente lançado pela editora britânica Orion Books, o livro foi publicado também em edição norte-americana pela Atlantic Monthly Press, com o título The Bell Ringers. Ambas as edições podem ser adquiridas na Amazon, em forma impressa ou eletrônica.) Publicada em 2009, a obra veio à luz, por coincidência, exatamente 60 anos depois da primeira edição de 1984, do também inglês George Orwell, ficção que previa a instalação de uma ditadura mundial em que cada cidadão era espionado e todos os detalhes de sua vida absolutamente controlados pelo governo (o Big Brother), por meio de um sistema de câmeras e comunicação eletrônica.
A legislação garante
Na base do raciocínio do autor de Dying Light está a constatação de que, se por um lado esses sistemas proporcionam os benefícios de melhores serviços públicos, maior segurança e capacidade de prevenção de atividades criminosas, ao mesmo tempo apresentam o grande risco de colocar nas mãos de quem exerce o governo o potencial para asfixiar a opinião pública e destruir a base da democracia, que é o poder exercido pelo povo e para o povo – não por e para quem exerce os poderes do Estado.
A partir do contexto real de prevenção e combate ao terrorismo que se implantou nos mandatos de George W. Bush nos EUA e Tony Blair na Grã Bretanha, o livro de Henry Porter pinta uma situação imaginária em que o primeiro-ministro inglês prepara simplesmente a instalação de uma ditadura, graças a sistemas de comunicação e informação que lhe propiciam o controle absoluto e total da vida e de todos os atos (inclusive atitudes políticas) dos cidadãos.
E o mais grave é que, apesar de ser obra de ficção, como 1984, o livro cita legislação real em vigor hoje na Inglaterra – e, pior ainda, assinala que todas essas leis restritivas à liberdade individual foram tranquilamente aprovadas e implantadas, com pouca discussão, debate ou reação da complacente e acomodada opinião pública, interessada apenas na sua rotina da vida diária e – como eu, quarenta anos atrás – sem levar em conta o risco político embutido nessas leis.
Segundo Porter, num comentário publicado como posfácio ao livro, “os britânicos passaram a ser os cidadãos mais estritamente controlados do Ocidente, talvez de todo o mundo. Temos mais câmeras nas ruas que a soma de aparelhos instalados em todo o resto da Europa. Essas câmeras infestam não só as ruas e os shopping centers, mas também restaurantes, cinemas e bares por toda parte, que fotografam a cabeça e os ombros de cada individuo que neles entra.”
E prossegue: “As pessoas são vigiadas o tempo todo. Ao viajar pelas rodovias todos são monitorados por câmeras que lêem as placas dos carros e os dados de cada viagem são armazenados por cinco anos.” E por aí vai.
Tudo abençoado por legislação vigente no país. O governo, segundo Porter, tem o direito de acessar os dados telefônicos e online de todas as pessoas, acompanhar e registrar a vida de seus filhos num banco de dados nacional e exigir mais de 50 informações de cada cidadão que deseja sair de seu próprio país. Transações individuais, dados sobre a saúde de cada um, tudo armazenado para sempre em bancos de dados.
Invadir, controlar
Um diploma legal que merece especial atenção em Dying Light é o Civil Contingencies Act 2004 (Lei de Contingências Civis, de 2004), que, segundo Porter, “permite que o primeiro-ministro, um ministro ou o líder do governo na Câmara desmantele da noite para o dia a democracia e o império da lei”. Citando outros autores, ele comenta que essa lei permite ao governo a suspensão de viagens, ocupação de propriedades, evacuação forçada, tribunais especiais e detenção e prisão arbitrárias.
Seria importante que alguma editora publicasse esse livro em português no Brasil. Deveriam lê-lo todos os que, no governo e fora dele, se preocupam com a manutenção das nossas liberdades individuais, da liberdade de expressão e de imprensa, no contexto maior dos direitos humanos, em face do inapelável avanço dos recursos eletrônicos, que, por sua própria natureza, tendem a se tornar cada vez mais invasivos e controladores. Da mesma forma que as burocracias.
E também deveriam ler esse inquietante livro os que defendem a unificação do número de identificação dos cidadãos; os que se opõem ou resistem à Lei de Acesso à Informação Pública, que entrou em vigor no Brasil em novembro último; os que escancaram abundantes informações e fotos de sua vida e de seus amigos nos Facebooks da vida; os que criam sistemas de “mineração de dados” que permitem às empresas prever o comportamento, preferências e tendências de consumo dos cidadãos; os que possibilitam que a moça da central de telemarketing que nunca me viu na vida me ligue à noite, em casa, me chamando pelo nome, para vender algum produto.
É cada vez mais fácil usar todos esses mesmos recursos que aumentam nossa eficiência e produtividade – e o muito mais que vem por aí na tecnologia digital – também para nos invadir, nos controlar, nos manobrar e nos dominar.
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[Nemércio Nogueira é consultor de empresas e diretor do Instituto Vladimir Herzog]