Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A Justiça condenada

 

A cassação do direito ao trabalho imposta ao juiz Baltazar Garzón pelo Supremo Tribunal da Espanha é destaque nesta sexta-feira, 10, na imprensa internacional. Não poderia ser diferente no Brasil, onde os jornais, embalados na controvérsia sobre o controle externo do Judiciário, também abrem grandes espaços para a notícia.

Dos três principais diários, apenas a Folha de S. Paulo não traz o assunto na primeira página. O Globo é o jornal que dá mais destaque ao tema, com chamada ao lado da manchete.

Pela decisão judicial, Garzón está proibido de exercer sua função pelos próximos onze anos, o que na prática encerra sua carreira de magistrado. A acusação, parte do conjunto de três processos encaminhados à corte, se refere à gravação, autorizada por ele, de conversas que revelam o envolvimento de altos dirigentes do Partido Popular em crimes de corrupção.

Os outros processos tratam da investigação, comandada por Garzón, sobre crimes cometidos pela ditadura de Francisco Franco, e de uma acusação por supostamente ter recebido dinheiro de entidades privadas para proferir palestras nos Estados Unidos.

Se tivesse prosseguimento, a investigação sobre os crimes do franquismo poderia envolver políticos e empresários poderosos da Espanha no desaparecimento de cerca de 110 mil opositores da ditadura que foi encerrada em 1975 com o Pacto da Moncloa. A alegação é de que Garzón teria violado as leis da anistia ao iniciar essa investigação.

Celebrizado por haver aberto processo que colocou na cadeia o ex-ditador chileno Augusto Pinochet, responsabilizando-o pela morte de cidadãos espanhóis, Garzón se tornou um símbolo da luta pelos direitos humanos em escala global ao promover o julgamento de tiranos e terroristas em qualquer parte do mundo, ajudando a criar um padrão internacional na questão dos crimes contra a humanidade.

Não é apenas um sintoma o fato de que a acusação contra ele tenha sido uma iniciativa da organização de extrema-direita conhecida como “Manos Límpias”. Muitos dos acusados pelos crimes da ditadura franquista são de alguma forma ligados a esse grupo.

Não apenas nos jornais brasileiros, mas também na imprensa americana e europeia, a punição imposta ao magistrado é apresentada como uma decisão política cuja repercussão a Suprema Corte da Espanha terá que carregar como uma mancha por todo o futuro.

Destaca-se principalmente o fato de que Garzón não foi o único juiz a autorizar escutas na investigação desses crimes, nem a omissão dos órgãos superiores da Justiça durante esses procedimentos, mas foi o único a ser punido.

Nas redes sociais

A lista dos serviços prestados por Baltazar Garzón à Justiça mereceria um capítulo à parte.

Entre outras proezas, ele mandou para uma prisão na Inglaterra o general Pinochet e desmascarou o Riggs National Corporation, banco americano envolvido na lavagem de dinheiro da família do ditador chileno; reabriu os processos por assassinatos cometidos durante a ditadura franquista e, por consequência, expôs uma rede de corrupção que deu vitalidade a algumas das grandes corporações espanholas; condenou um ex-militar argentino e abriu os registros dos crimes da Operação Condor, acordo entre ditaduras latino-americanas para a execução de opositores; atacou a representação política do grupo separatista ETA, na Espanha, por ligações com o terrorismo; ajudou a desmantelar o braço espanhol da organização terrorista al-Qaeda; denunciou e desmanchou os esquadrões da morte criados no governo socialista da Espanha, durante os anos 1980, para assassinar militantes do movimento separatista basco; e, mais recentemente, abriu processo denunciando torturas contra prisioneiros na base americana de Guantánamo, em Cuba.

Como se vê, Garzón colecionou inimigos por toda parte e em todos os matizes da política internacional. Por essa razão, ele é tido como o representante de uma nova cepa de magistrados, cujo compromisso se resume a fazer Justiça.

Essa percepção fica clara na leitura dos arquivos de jornais sobre suas atuações desde o final dos anos 1990. Aos 56 anos de idade, Baltazar Garzón já se havia transformado em uma lenda viva, com uma atuação sem grandes eloquências e um estilo severo de trabalho, quando teve interrompida sua carreira.

Para reabrir os casos de crimes contra a humanidade, por exemplo, ele considerou que as leis nacionais de anistia, produzidas sob a ameaça de regimes ditatoriais agonizantes, são consideradas ilegítimas pelos tratados internacionais de direitos humanos, conforme lembra o desembargador aposentado Walter Maierovitch em entrevista ao Estado de S. Paulo.

Garzón ainda pode recorrer à Corte Europeia. Nesta manhã de sexta-feira, já surgem listas de solidariedade e apoio a ele em vários idiomas, que prometem se transformar em um novo fenômeno nas redes sociais.