Na sexta-feira da semana passada, a Folha de S.Paulo deu no alto da página A 4 um título literalmente extraordinário: ‘Lula tenta abafar crise com promessa megalomaníaca’.
O título espanta pelo contraste com a sóbria e objetiva matéria que se lhe segue, sobre o discurso em que o presidente, numa favela em Belém, anunciou que o seu governo fará o ‘maior programa social já visto na face da Terra’.
E espanta, principalmente, por derrubar com som e fúria a fronteira entre informação e opinião, teoricamente entranhada no modelo de jornalismo adotado pela Folha – e por todos os jornais do mundo produzidos de acordo com o padrão anglo-saxônico que se impôs ao longo do século passado.
Mais espantados ainda devem ter ficado os leitores ao notar que a enormidade não mereceu uma única referência na coluna dominical do ombudsman da Folha, Bernardo Ajzenberg.
Difícil imaginar que o agressivo juízo de valor que percorre o título – desde o ‘tenta abafar’ até o ‘megalomaníaca’ – tenha sido um acidente de percurso ou um incidente isolado: um editor deixou o fígado subir-lhe à cabeça, o que fez que esquecesse, por um momento, das normas canônicas de titulação de matérias.
Pois o título crítico é de uma coerência irrepreensível com o duro tratamento que o jornal vem dando ao governo Lula. Só para registro, há quem atribua a animosidade a uma suposta exumação da desfeita do ainda candidato ao jornal.
Pouco antes de terminar o almoço com diretores e membros do Conselho Editorial da Folha, para o qual tinha sido convidado, em 19 de julho de 2002, Lula se retirou abruptamente quando Otavio Frias Filho fez-lhe uma pergunta ‘veemente’ sobre a aliança do PT com o PL.
Antes, Lula se recusara a responder a uma pergunta do diretor do jornal sobre o seu preparo para governar o país, considerando-a preconceituosa. A Folha publicou matéria a respeito seis dias mais tarde, quando o episódio já tinha vazado no Globo.
Exemplos da dureza das críticas ao presidente são sucessivos editoriais, como o da quinta-feira, 26, ‘Lixo político’, que acusa o governo da ‘péssima prática de varrer seu lixo para debaixo do tapete’; os textos do colunista Clóvis Rossi, como o da terça-feira, 24, ‘Os aiatolás do Brasil’, que começa dizendo que o PT ‘ corre o sério risco de repetir no Brasil a frustração causada pelos aiatolás no Irã’;e por último, mas nem de longe menos importante, o mais recente artigo semanal do diretor de Redação Otavio Frias Filho.
Naquela mesma quinta-feira, 26, ele escreveu que o governo mentiu em relação à política econômica, enrolou no caso da política social e foi farsante ao prometer fomentar a produção. ‘ Agora, cai a última máscara, quando todo mundo constata que até mesmo o compromisso com a moralidade administrativa não era para valer’, apontou o diretor da Folha, antes de concluir: ‘Trata-se de um governo que praticou estelionato eleitoral, que abjurou de princípios, que se lançou às benesses do poder com a voracidade canhestra de quem nunca comeu melaço’.
Só para registro também, analistas políticos duvidam que a ira da Folha tenha sido desencadeada pelo Waldogate. ‘A não ser’, diz um deles, ‘que o jornal tenha esquecido do escândalo da extorsão de empresários de Santo André para o financiamento de campanhas petistas.’
Jornal convencional ou de combate?
Seja como for, transcrevem-se aquelas passagens – cujo mérito aqui não está em discussão – apenas para ressaltar a identidade entre o título atipicamente opinativo e as opiniões prevalecentes na Folha sobre o governo Lula. (Aliás, mesmo que se discorde de sua orientação, os textos de Frias Filho e Clóvis Rossi representam, pela qualidade, clareza e contundência, um bem-vindo contraste com a habitual flacidez dos editoriais do jornal.)
Essa identidade não é coisa boa. A menos que a Folha avise o seu leitorado que, pelo menos diante do governo Lula, se transformou em jornal de combate, conforme a tradição francesa surgida no século 18, para desmoralizar o regime monárquico e mobilizar o povo para a Revolução. O jornalismo de combate, como se sabe, tem menos compromissos com os fatos do que com as verdades e os objetivos de seus praticantes.
Tudo bem quando o jogo é jogado às claras, sabendo de antemão os seus leitores que não encontrarão nesse tipo de imprensa engajada nem isenção, nem equilíbrio, muito menos fair play.
Quem a lê busca a satisfação de ver nela reiteradas convicções que já são suas, descrições de acontecimentos e da atuação de personagens que combinam com isso e novos argumentos em favor da causa que os leitores compartilham com os editores – pouco ou nada importando a base factual desses argumentos.
Intragável é o jornal mainstream, convencional, que disfarça com o alvo manto da objetividade o seu engajamento político ou ideológico. Por isso o título da Folha fez este leitor se lembrar imediatamente dos títulos do Estado de S.Paulo e do Globo sobre o governo Goulart, que ajudaram a depor pela força em 1964.
Funcionava assim: um parlamentar da oposição, de preferência da UDN, denunciava o governo por ‘subversão’ ou ‘corrupção’ – a dupla contra a qual, alegadamente, se daria o golpe. Aí aqueles jornais estampavam algo como: ‘Senador Fulano aponta corrupção no governo’ (ou ‘revela infiltração comunista na Presidência’). Fatos, portanto.
E no dia seguinte, tendo o Palácio se manifestado sobre o assunto, publicavam: ‘Governo tenta desmentir grave denúncia’. A tradução era direta: ‘tentar’ equivalia a uma versão taquigráfica de ‘não conseguir’.
Mais honestos eram a Última Hora governista de Samuel Wainer (‘um jornal vibrante, uma arma do povo’), e a feroz Tribuna de Imprensa de Carlos Lacerda, porque, além de serem bem-feitos, não escondiam o que eram.
A Folha de hoje, é o caso de dizer, só tem em comum com esses jornais de quatro décadas passadas o fato de ser de papel e ser vendida em banca.
Daí o choque e o mal-estar provocados pelo título que investe de borduna em punho contra o presidente Lula – quando o certo seria, na página do noticiário, ‘Em meio à crise, Lula faz promessa grandiosa em favela’, por exemplo; e, na página dos editoriais, ‘Promessa megalomaníaca’ (ou outro adjetivo do gênero, mais breve para caber no espaço), antecipando uma crítica não menos pesada do que o próprio título.
Em suma, bata a Folha em Lula quanto queira – mas no lugar adequado para essas coisas e sem apresentar uma notícia com expressões de editorial. Ou misture tudo e mostre a mão – para os seus leitores não comprarem gato por lebre.