Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As críticas de Gore e Blair à grande mídia

Quem lançar um olhar retrospectivo para o ano que chega ao fim verá que avaliações de membros da elite política do Primeiro Mundo sobre o papel da mídia na democracia e sobre sua experiência no trato com jornalistas merecem um registro especial.

Refiro-me especificamente ao livro Ataque à Razão, do ex-vice-presidente americano Al Gore, lançado em maio nos Estados Unidos; e ao discurso do então primeiro-ministro britânico Tony Blair, no Reuters Institute for the Study of Journalism da University of Oxford (ver, no Observatório, ‘O que esta acontecendo com a imprensa?‘) em junho.

Ambas as manifestações foram objeto de ligeiras análises na mídia brasileira à época, inclusive aqui, neste Observatório (ver ‘Lá e cá, a culpa é da mídia‘, ‘Reação a dez anos de críticas‘, ‘Para Blair, mídia age como `besta selvagem´‘ e ‘As feras que `despedaçam pessoas´‘). O ‘tom’ predominante dessas análises foi, naturalmente, de crítica. Em geral, desqualificam-se, sem mais, os autores com argumentos do tipo ‘trata-se de políticos ressentidos que não gostam de ser fiscalizados e/ou criticados pela mídia livre e independente’.

É interessante observar, no entanto, como algumas críticas que elites das democracias liberais hegemônicas têm feito à grande mídia guardam semelhança com aquelas que elites latino-americanas também fazem à mídia no nosso continente (ver ‘Mídia e poder na América Latina‘). Vale a pena, portanto, considerar o que disseram e/ou escreveram.

Lembro que nada substituirá a leitura do livro e do discurso aqui comentados (que recomendo enfaticamente ao eventual leitor deste artigo). Faço apenas um resumo parcial salientando os pontos que interessam ao meu argumento.

A TV e o declínio da esfera pública

Al Gore está presente na mídia global pelo Oscar de seu documentário An Inconvenient Truth (EUA, 2006, dirigido por Davis Guggenheim) e por ter recebido o Prêmio Nobel da Paz, ambos decorrentes de seu envolvimento com a questão do aquecimento global e da proteção ao meio ambiente. Mas o Ataque à Razão (Editora Manole, 2007) trata de outro problema.

Identificado, sobretudo, como um duro ataque à administração de George W. Bush, o livro é construído em torno de um argumento sobre o declínio da esfera pública nos Estados Unidos e o progressivo desaparecimento da razão como base para as escolhas dos cidadãos e fundamento primeiro da democracia americana. E quais seriam, para Al Gore, os responsáveis por essa situação?

Al Gore associa a Era da Razão com o predomínio dos jornais na comunicação dos EUA. Desde que a televisão passou, há 45 anos, a ser o meio definidor da esfera pública, elementos fundamentais da democracia começaram a ser colocados de lado até que se chegou a uma ‘ameaça’ derivada da maneira dominante como a comunicação se dá hoje entre os cidadãos estadunidenses. Ele aponta três ‘regras’ que regem a constituição da esfera pública contemporânea e que a diferenciam da ‘era da palavra imprensa’:

1. ‘Os fluxos de informação de larga escala de hoje deslocam-se, de maneira geral, em uma única direção. O mundo da televisão torna praticamente impossível aos indivíduos tomarem parte do que se passa por uma discussão nacional’;

2. ‘O alto investimento de capital exigido para a propriedade e operação de uma estação de televisão e a natureza centralizada das redes de televisão de sinal aberto (…) levou à crescente concentração da propriedade por um número ainda menor de grandes corporações que hoje controlam de forma efetiva a maior parte da programação televisiva do país’. E mais, ‘as divisões de jornalismo são vistas como um centro de lucro planejado de modo a gerar receitas e, às vezes, a validar os planos mais abrangentes da corporação que é proprietária da rede de televisão’; e

3. ‘é importante diferenciar a qualidade da vivacidade experimentada por telespectadores daquela experimentada por leitores (…) um indivíduo que passa quatro horas e meia assistindo à TV provavelmente terá padrão de atividade cerebral bem diferente daquele de um indivíduo que passa quatro horas e meia por dia lendo.’

Para Al Gore, a necessária reconstrução do espaço público passa ‘pelo restabelecimento do discurso democrático genuíno, em que os indivíduos possam participar de maneira significativa’ e ‘isso significa reconhecer que é impossível haver cidadãos bem informados sem que haja cidadãos bem conectados.’

A esperança, portanto, estaria na internet e também na integração entre internet e televisão que está sendo experimentada, desde 2005, pela Current TV, criada pelo próprio Al Gore em sociedade com Joel Hyatt. Ela já pode ser vista em 51 milhões de domicílios, tanto nos EUA como na Inglaterra (ver, neste OI, ‘A mídia colaborativa em grande escala‘ e ‘Espectadores convocados a contribuir com conteúdo‘) .

[Registre-se que a Current TV foi ganhadora do prêmio Emmy 2007 na categoria ‘serviço de televisão interativa’].

Blair e a ‘fera selvagem’

Já o discurso do ex-primeiro ministro Tony Blair ( ver íntegra aqui, em inglês), ao contrário do livro de Al Gore, trata de forma direta da cobertura que a mídia inglesa faz da política e dos políticos.

Depois de elogiar a imprensa, reconhecer que ela é essencial em uma sociedade livre e dizer que seu discurso não é uma reclamação, mas sim um argumento, Blair afirma que ‘faz parte da liberdade poder fazer comentários sobre os meios de comunicação’. Selecionei, então, alguns de seus comentários, na seqüência em que aparecem no texto:

‘(…) [O público] é a prioridade, mas ele não é bem atendido pelo atual estado de coisas.

‘Uma grande parte do nosso [do governante] trabalho hoje – fora das decisões realmente maiores, mas tão importante como qualquer outra coisa – é lidar com a mídia, sua dimensão, seu peso e sua hiperatividade constante. Em alguns momentos ela literalmente subjuga você.

‘Nós gastamos muito tempo discutindo por que há tanto cinismo em relação à política e à atividade pública. (…) Minha consideração, depois de 10 anos, é que a verdadeira razão para o cinismo é precisamente o modo como os políticos e a mídia interagem. Nós, no mundo da política, porque temos medo de dizer as coisas, acabamos alimentando a noção de que somos os únicos responsáveis.

‘O resultado [das mudanças no contexto em que a mídia opera neste século 21] é uma mídia, cada vez mais e perigosamente, impulsionada pelo `impacto´. Impacto é o que interessa. (…) Claro que a correção de uma reportagem conta. Mas ela é freqüentemente secundária ao impacto. É essa necessidade de devoção ao impacto que está destruindo os padrões de comportamento da mídia, jogando-os para baixo, fazendo da diversidade da mídia não a força que deveria ser, mas, acima de tudo, um impulso para o sensacionalismo.

‘A audiência precisa ser capturada, mantida e suas emoções envolvidas. Qualquer coisa que seja interessante é menos importante do que algo que provoque irritação ou choque. As conseqüências disso são graves.

‘Primeiro, escândalo e controvérsia se tornam muito mais importantes do que reportagens. Notícia raramente é notícia, a menos que gere controvérsia, tanto ou mais do que esclarecimento.

‘Segundo, atacar um motivo é muito mais potente do que atacar um julgamento. Não é suficiente que alguém cometa um erro. Tem que ser venal. Conspiratório. O que cria o cinismo não são erros; são alegações de má conduta. Mas a má conduta é o que tem impacto.

‘Terceiro, o medo de `ficar para trás´ significa que a mídia hoje, mais do que nunca, trabalha em bloco. Nesse modelo, ela funciona como uma fera selvagem, fazendo em pedacinhos pessoas e reputações. Mas ninguém se atreve a `ficar para trás´.

‘Quarto, (…) a nova técnica é o comentário sobre a notícia que passou a ser tão importante ou mais importante do que a própria notícia. (…) Freqüentemente a mídia oferece a interpretação do que o político diz tanto quanto a cobertura do que o político realmente disse. Na interpretação, o que importa não é o significado do que o político disse, mas o que pode ser interpretado sobre o que ele disse. Isso leva [o governante] a gastar muita energia em refutar afirmações sobre os significados do que foi dito, que tem pouca ou nenhuma relação com o que se pretendeu dizer.

‘Quinto, (…) a confusão entre notícia e comentário. Comentário é algo perfeitamente respeitável no jornalismo. Desde que seja separado. Opinião e fato deveriam ser claramente separados. A verdade é que uma grande parte da mídia hoje simplesmente não separa mais fato de opinião e se comporta como se isso fosse muito natural. Em outras palavras: isso não é exceção. É a rotina.

‘A conseqüência final de tudo isso é que é raro encontrar equilíbrio na mídia hoje.

‘Uma maneira precisa ser encontrada [para regular a relação mídia-atividade pública]. Realmente acredito que a relação entre vida pública e mídia se deteriorou, a ponto de exigir reparação. Esse dano corrói a confiança do país em si mesmo; ele solapa a avaliação do país, de suas instituições e, acima de tudo, reduz nossa capacidade de tomar as decisões corretas na direção do futuro.’

Lições para o Brasil

Apesar das diferenças históricas existentes entre os sistemas de comunicação no Brasil, nos EUA e na Inglaterra, as opiniões de Gore e Blair envolvem questões de princípio e seus países são democracias referenciais, utilizadas de forma generalizada como modelo a ser seguido, inclusive nas comunicações.

Naturalmente, no Brasil não se pode falar, como faz Al Gore em relação aos EUA, de uma Era da Razão democrática fundada nos jornais. Só agora nossa população começa a atingir índices razoáveis de alfabetização, condição que Thomas Jefferson sempre considerou como necessária para que a imprensa universalizada desempenhasse sua função na democracia (‘Onde a imprensa é livre, e todo homem é capaz de ler, tudo está seguro’). A nossa mídia impressa, ao contrário, continua elitizada como sempre foi. Por outro lado, não há qualquer dúvida sobre a televisão e sua unidirecionalidade como forma dominante de comunicação entre nós desde, pelo menos, a década de 1970.

Aqui também, como nos EUA, há uma concentração crescente da propriedade na mídia (não só na televisão) e o jornalismo ‘sitiado’ padece das mesmas dificuldades decorrentes de sua vinculação com a comunicação comercial.

Já os duros comentários de Tony Blair sobre a cobertura que a mídia faz da política e dos políticos, sua relação com os governantes e as conseqüências implícitas para a governabilidade, poderiam certamente ter sido feitos por um governante brasileiro. Compromisso com o impacto da notícia, sensacionalismo, alegações infundadas, destruição de reputações, editorialização da notícia, desequilíbrio e necessidade de regulação existem na Inglaterra e no Brasil. Lá, como cá, ‘reparos’ são necessários.

A esperança de uma comunicação interativa, integrando a internet e a televisão, restauradora de uma esfera pública democrática (Gore), resolveria as questões levantadas por Blair?

Será que a televisão já teria produzido no Brasil as conseqüências que Al Gore alega que ela causou na democracia estadunidense?

O modelo de TV digital que está sendo implantado entre nós – privilegiando os antigos grupos concessionários e impedindo o surgimento de novos – possibilitaria a solução desejada por Al Gore?

Certamente seria produtivo refletir sobre a realidade subjacente às questões levantadas por dois integrantes da elite dirigente de duas democracias consideradas maduras – e tão diferentes da nossa – que ousaram criticar publicamente a grande mídia em 2007.

O que está em jogo é, nada mais, nada menos, do que a liberdade e a democracia.

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)