Em dado momento de sua instrutiva entrevista a este Observatório sobre os começos do jornalismo na televisão pública brasileira (veja remissão abaixo), Fernando Pacheco Jordão descreve os cuidados que precisava tomar, quando diretor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo, sob a ditadura, para que ninguém pudesse acusar de ‘subversivas’ as (corajosas) matérias que a emissora levava ao ar.
E contou ao entrevistador Mauro Malin: ‘Eu brigava com o pessoal, dizia: ‘Olha, o primeiro fdp que me puser um adjetivo na matéria está na rua’.’
Ele não falou ‘fdp’. Falou a expressão inteira, e foi a expressão inteira que saiu no site, antes de ser substituída.
Agora, o background da história. O artigo ‘BBC jogada às feras: a história de uma crise sem precedentes’ (remissão abaixo), deste leitor, cita uma passagem do diário de Alastair Campbell, quando ainda era o homem de mídia do primeiro-ministro Tony Blair, em que ele confessava estar determinado a ‘f….’ o repórter Andrew Gilligan, da BBC.
O artigo mantinha por extenso, em inglês, o conhecidíssimo e empregadíssimo verbo. O autor desconhecia que o Observatório não publica palavrões. Ao ser informado do veto, sugeriu que o site revisse a sua posição ou abrisse espaço para um debate sobre o uso na imprensa do que os dicionários denominam termos chulos.
Ao ler a entrevista em que o ‘fdp’ aparecia com todas as letras, imaginou que o Observatório mudara de posição. Na realidade, como veio a saber, o xingamento saiu na íntegra por engano.
Se assim é, este leitor toma a liberdade de dar a partida ao debate proposto. É sua convicção de que jornalista não deve escrever palavrões em textos para publicação nem dizê-los ao microfone. Quanto mais não seja, por uma questão de bom gosto. É sua convicção também que palavrões de terceiros, em declarações ou textos merecedores de publicação, por seu conteúdo ou autoria, devem sair, entre aspas, tal qual foram ditos ou escritos.
É o que faz, por exemplo, a Folha de S.Paulo. Já a revista Veja prefere substituir o palavrão por reticências. O Estado de S.Paulo varia: às vezes faz uma coisa, às vezes outra.
A Folha já deu que o presidente Lula disse que estava ‘p. da vida’ com alguma coisa. Ou melhor: a Folha deu também as três letras seguintes que formam o que em inglês se chama ‘four-letter word’, para designar o verbo usado, por exemplo, por Campbell em relação a Gilligan, no caso antes citado. (A propósito, a revista inglesa The Economist, que de vulgar, indecente ou sensacionalista não tem nada, escreve o verbo por extenso.)
P. da vida ou pê da vida?
Se a Folha não tivesse dado por inteiro o adjetivo que, em linguagem corrente, significa, segundo o Aurélio, ‘danado da vida’, o leitor ficaria sem saber se o presidente disse que estava ‘p. da vida’, ou ‘pê da vida’, como muita gente diz para não dizer mais – ou se ele disse que estava ‘p. da vida’, como sairia na Veja e neste site.
Mas isso não é o mais importante. Para este leitor, o mais importante é o jornalista transmitir a verdade dos fatos – literalmente. E no ano 2001 da era cristã, é fato inegável que a esmagadora maioria das pessoas, em um número cada vez maior de circunstâncias, fala palavrões – a tal ponto que vários deles nem mais são considerados indizíveis, inaudíveis ou impublicáveis.
Merda, por exemplo. (Este leitor está escrevendo o termo como se fala, sem saber se também faz parte do index verborum prohibitorum deste site.) E tesão? Ou saco cheio?
Goste-se disso ou não, as fronteiras entre a palavra e o seu aumentativo se esgarçam a cada dia. Além do mais, o que é palavrão para um pode não ser para outro. Incontáveis milhões de brasileiros já falavam camisinha quando a imprensa que se dizia sadia escrevia preservativo. O povo também falava veado e lia homossexual.
É claro que nem todos os palavrões ou expressões palavrônicas já se tornaram palavras como outras quaisquer. Exatamente por isso, dependendo de que boca saem, ou do proverbial contexto, são, em si mesmas, notícia. E notícia, com perdão pela obviedade, é aquilo que mais o leitor/ouvinte/espectador espera do jornalismo.
Substituir o palavrão por reticências ou abreviações, serve, afinal, para quê? Todo mundo sabe o que está sendo omitido. A intenção pode ser cem por cento legítima: não contribuir para a brutalização da linguagem, não ofender o leitor ou o decoro da publicação, para não ser inadvertidamente confundida com a imprensa de esgoto. Mas que o artifício deve passar para o leitorado em geral um quê de puritanice e hipocrisia, lá isso deve. Salvo melhor juízo.
Portanto, o palavrão ainda não, mas a palavra está franqueada.