Quando tomei conhecimento da sentença que condenou o jornalista Lúcio Flávio Pinto por ter denunciado em seu jornal o maior grileiro de terras do país, Cecílio do Rego Almeida, e em seguida fui convidada a participar deste ato, imediatamente me veio à memória de forma muito viva outro ato de desagravo quase idêntico a este de que participei, há exatamente sete anos, em janeiro de 2005, em função da agressão física desferida então contra Lúcio pelo diretor corporativo das Organizações Romulo Maiorana, Ronaldo Maiorana, no Restô do Parque, fato que deixou a cidade estupefata em uma sexta-feira de triste memória.
Hoje o agressor é outro, mas não resta dúvida de que a motivação é exatamente a mesma: a tentativa de calar uma das vozes mais qualificadas, contundentes e singularmente representativas dos interesses da maioria da população da região amazônica que, todos sabemos, historicamente tem sofrido todas as formas de espoliação.
Seja pelas riquezas naturais saqueadas, seja pela adoção de um modelo de desenvolvimento que privilegia os interesses das elites locais, nacionais e internacionais, ou pela distorcida imagem da região que circula nos aparatos da indústria global da mídia, em que a Amazônia é mostrada como um lugar anacrônico e de populações invisíveis – ou, o que é quase a mesma coisa, despreparadas para gerir sua própria história –, a região amazônica, pela sua importância na geopolítica global, é, sem dúvida, um dos alvos preferenciais das diferentes formas de exclusão promovidas pelo capitalismo desde o pós-guerra.
Poucas redes controlam a comunicação
O triste e insano episódio que presenciamos agora, em que Lúcio Flávio foi condenado a indenizar quem roubou as terras do povo amazônico, traduz de forma inequívoca os desmandos e a inversão de valores que predominam no Estado brasileiro. Os que andam dentro da lei e defendem os interesses da cidadania são punidos, enquanto os que afrontam a lei e atentam contra os interesses da sociedade ficam à solta e realimentam em benefício próprio, à sombra da impunidade, um ciclo de práticas criminosas que parece não ter fim.
Trata-se de uma maldita herança da cultura política autoritária brasileira que remonta a nosso passado colonial, fortemente enraizada no clientelismo, no coronelismo e na visão patrimonialista do Estado, tratado como propriedade privada das elites. E que, já no período republicano, debilitou ao extremo a – ainda hoje tão frágil – democracia brasileira.
Outro aspecto a debilitar a democracia no Brasil, diretamente ligado ao que denunciamos aqui hoje, é o modo como operam os sistemas de mídia brasileiros. A despeito do que prevê nossa Constituição, no artigo 220 do parágrafo 5º – “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio” –, o padrão de propriedade dos meios no país, com sérias implicações sociais e culturais, é francamente monopolístico. Poucas redes controlam a comunicação no país e sobre elas existe pouca ou nenhuma regulação por parte do Estado.
Informação transformada em mercadoria
A exigência de instantaneidade, a velocidade na produção da notícia, a saturação de informações que marcam a época contemporânea, entre outros, reduzem as chances de construção de uma cultura pública e de uma cidadania emancipada, já que a informação é controlada por poderosas corporações multimídias no Brasil e no mundo, que figuram hoje entre as mais lucrativas da economia global.
Por isso mesmo, como sentencia o respeitado pesquisador da área da comunicação Muniz Sodré, “a nova face da imprensa no capitalismo avançado acarreta mudanças tão profundas que põe em risco a própria existência do jornalismo” (ver aqui). Segundo ele, a atenção do consumidor é a mercadoria mais valiosa para os grupos de mídia nesses novos tempos. Mesmo quando estamos no plano da gratuidade do acesso, esta gratuidade corresponde à estratégia de mercado para disputar o coeficiente de atenção e, com isso, atrair investidores publicitários.
Na internet, em especial, conforme o autor, as informações jornalísticas estão visceralmente associadas ao marketing e cada vez mais os grupos do setor apostam na tendência de migração dos conteúdos do jornal em papel para o ambiente online. Os interesses econômicos que presidem hoje a lógica de produção da informação, transformando-a em mercadoria, tornam muito tênue a fronteira entre o jornalismo e o entretenimento, e relativizam os critérios de aferição do que é verdade e do que é mentira, imperativos clássicos do jornalismo.
O direito inalienável à informação
É justo nesse cenário de embaçamento de fronteiras entre o fato e a ficção, entre a verdade e a mentira, que o jornalismo praticado por Lúcio Flávio Pinto constitui um grande diferencial. Por isso suscita tanto ódio e sentimento de revanche, a ponto de por várias vezes quererem calá-lo no braço, na base da agressão física. Porque pela riqueza de fontes e de fatos incontestes de que se vale é uma forma de jornalismo “incômoda” na Amazônia e no Brasil contemporâneos. Coloca o dedo na ferida dos poderosos e, quanto mais fere seus interesses, mais será atacado, em uma relação de causa e efeito, por essa ótica tortuosa.
Os achincalhes e a forma cínica com que o juiz Amílcar Guimarães se manifestou em seu Facebook a respeito deste episódio, admitindo com todas as letras as deformações do judiciário brasileiro, é uma peça que ilustra muito bem esta espécie de neobarbárie que estamos vivendo na Amazônia e no Brasil.
A ela respondemos com a força da nossa indignação e da nossa capacidade, sempre invencível quando queremos, de marchar na contramaré e fazer valer o contrapoder. Por isso é tão importante estarmos aqui hoje. Espero que sigamos inarredáveis e não capitulemos. Não somente para defender um jornalista tão valoroso quanto o Lúcio, mas principalmente para defender a forma de jornalismo em que acreditamos e nosso direito inalienável à informação socialmente relevante.
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[Rosaly de Seixas Brito é jornalista e professora da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal do Pará]