Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A herança de Steve Jobs

Quando Steve Jobs morreu, as lojas da Apple se encheram de gente comovida e as grandes portas de vidro viraram pequenos altares, com flores, cartas, fotos e maçãs. Entre as inúmeras dietas radicais às quais Jobs se submeteu, consta que ele e seu amigo Daniel Kottke, colega da universidade que ele nunca concluiu, passaram uma semana inteira apenas à base de maçãs. Jobs teria tido a ideia do nome da empresa num campo de maçãs. Demorei um tempo para entender por que a maioria das maçãs nesse dia de luto era verde. Afinal, maçãs vermelhas são mais fáceis de achar. E as maçãs do logotipo da Apple são pretas, brancas, prata, enfim, não são necessariamente verdes.

Hoje (8/03), ao preparar um iPod para um amigo, lembrei que há tempos queria comprar “The Beatles Box Set”, coleção de todos os álbuns gravados em estúdio, que saiu com mini-documentário e vídeo do primeiro show dos Beatles nos Estados Unidos, em 1964. Sim, não tenho vergonha de comprar música na internet, remunerando os artistas. E lá estava ela: a brilhante maçã verde da Apple dos Beatles. Não mordida, como a Apple de Jobs. As Apples britânica e americana passaram décadas em disputas jurídicas até que a paz foi selada em 2010 e permitiu que Jobs lançasse os Beatles na iTunes Store.

Jobs usava iPods, claro, mas ouvia vinis em casa, de modo que reconhecia que a qualidade da música digital ainda tinha e tem de melhorar. Jobs se considerava um artista e definiu que o principal valor da Apple é fazer produtos incríveis – lucrar é secundário. Ontem, na iTunes Store, me ocorreu algo inédito: recebi mensagem de erro ao baixar “Cry Baby Cry”. “O arquivo parece corrompido. Para baixar de novo, escolha ‘Checar Downloads Disponíveis’ no menu da loja virtual.” Tentei de novo, mas o arquivo continuou corrompido. “Cry, baby, cry.

“Não queremos nada menos que a excelência”

Ao olhar o gráfico do valor das ações da Apple nos últimos dois anos, em vez de olhar só o do próprio dia, como as pessoas fazem, especialmente os jornalistas, o crescimento é fenomenal. O britânico Jony Ive, hipertalentoso designer-chefe da empresa, continua lá com sua turma, definindo o que os engenheiros vão ter de se desdobrar para produzir. Mas ele perdeu seu melhor interlocutor. E o novo chefe, Tim Cook, não tem a paixão de Jobs nem é um criador de produtos. O novo CEO da Apple foi antes responsável por logística e fornecedores externos.

Quando Jobs estava em licença médica, Cook fez um discurso dizendo que a Apple está “na face da Terra para fazer bons produtos, e isso não vai mudar. Nós estamos constantemente focados em inovação. Nós acreditamos no simples, não no complexo. Nós acreditamos em dizer não a milhares de projetos, de modo que a gente possa ficar realmente focado naqueles poucos que são realmente importantes. Francamente, não queremos nada menos que a excelência e a gente tem a honestidade de admitir quando está errado e a coragem de mudar”.

O slogan interno do Google

No ano passado, Larry Page, que morava a três quadras de Jobs e ia retomar o controle do Google, quis fazer uma visita alegando precisar de dicas de como ser um bom CEO (principal executivo de uma empresa). Jobs ainda estava furioso com o Google por conta do Android, que considerava uma cópia malfeita do sistema do iPhone. “Meu primeiro pensamento foi: F… you”, disse Jobs. Mas ele se deu conta de quanto foi ajudado por tantas pessoas quando era jovem, entre elas Bill Hewlett (o H da HP).

Quando Page chegou, ouviu as ideias de Jobs sobre como construir grandes produtos e empresas duráveis. “O ponto principal foi foco. Imagine como o Google quer ser quando crescer”, disse Jobs a Page. “Quais são os cinco produtos que você quer focar? Livre-se do resto, porque eles estão derrubando você. Eles estão tornando você uma Microsoft”, disse Jobs, segundo depoimento ao biógrafo Walter Isaacson.

Até hoje fico chocada ao lembrar de um slogan interno do Google: Don’t be evil (Não seja mau). Uma empresa que precisa dizer isso a seus funcionários será que precisa de conselhos de Jobs?

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[Marion Strecker é jornalista, cofundadora e correspondente do UOL em San Francisco]