Na noite de segunda-feira (5/3), a Rede Bandeirantes exibiu o último episódio do programa Mulheres ricas, o reality show que acompanhou o cotidiano de cinco milionárias – Val Marchiori (empresária e apresentadora), Narcisa Tamborindeguy (empresária), Brunete Fraccarolli (arquiteta), Lydia Sayeg (joalheira) e Débora Rodrigues (automobilista). Apesar do show de futilidades e extravagâncias de gosto duvidoso, o programa foi bastante comentado nas redes sociais, obteve bons índices de audiência (alcançou o 3º lugar no Ibope) e chegou a ser noticiado até no exterior. Segundo o jornal britânico DailyTelegraph, Mulheres ricas é reflexo do boom de milionários gerado pela economia brasileira aquecida. Em contrapartida, para The Guardian, também da Grã-Bretanha, o programa representa um deboche das desigualdades sociais do Brasil. Embora os reality shows apresentem mais encenações do que a realidade propriamente dita, Mulheres ricas proporcionou uma inusitada representação da elite econômica brasileira. Elite caracterizada, principalmente, pelas suas atitudes ostentatórias, por ser altamente colonizada, pela adoção de práticas aristocráticas e por sua grande aversão à população pobre.
Segundo os historiadores, a excessiva ostentação da classe dominante brasileira é herança portuguesa. Diferentemente de outras nações europeias, Portugal não investia parte de seus capitais em atividades produtivas. Quase toda a riqueza gerada no país era destinada à ostentação material da corte. Não obstante, a elite lusitana prontamente aderiu a tais costumes e, posteriormente, a elite brasileira também passou a adotar esses hábitos.
“Servir caipirinha… Que pobreza!”
Entre os diversos tipos de comportamento que definem as classes mais abastadas no Brasil, o mais presente durante os dez episódios do reality show Mulheres ricas foi, certamente, a ostentação de bens materiais e imateriais. Piquenique com caviar e champanhe, animal de estimação bebendo água mineral importada, tarde de golfe no Guarujá, cirurgias plásticas desnecessárias e relaxamentos em Spa foram algumas das extravagâncias apresentadas no programa. Para Val Marchiori, adquirir um avião no valor de trinta milhões de reais é como comprar uma blusa nova.Lidya Sayeg gosta de comprar compulsivamente bolsas, vestidos, joias e calçados caríssimos. Brunete Fraccarolli e Narcisa Tamborindeguy modificam constantemente as decorações de suas respectivas residências. Por sua vez, Débora Rodrigues encontrou na aquisição de automóveis luxuosos (o fetiche dos brasileiros que ascendem socialmente) a sua forma de ostentação. “Em uma loja de carros, em uma loja de motos, seja a hora que for, eu vou me sentir bem.” Apesar de não se considerar uma mulher adepta a ostentações, Débora é moradora de Alphaville (bairro nobre da Região Metropolitana de São Paulo), possui um caminhão avaliado em 800 mil reais e não hesitou em desembolsar a bagatela de noventa mil reais (“preço de carro popular”, segundo ela) para comprar uma moto.
Outro hábito típico de nossa elite é sobrevalorizar tudo o que está relacionado à Europa e aos Estados Unidos e, por outro lado, menosprezar tudo o que diz respeito ao Brasil. Temos assim, ao contrário de outros países, uma elite antinacionalista. Val Marchiori adora Buenos Aires, pois a capital argentina lembra a Europa. Em certa ocasião ela afirmou que não gosta de andar a pé em São Paulo, pois a cidade, ao contrário de Paris, tem vários buracos nas calçadas. Já no final do primeiro programa, a loira chegou a sair de uma festa, pois no evento era servido caipirinha (bebida tipicamente brasileira) para os convidados. “Não ter champanhe numa festa. […] Servir na festa caipirinha. Ai, que pobreza! Não dá pra ficar muito tempo. Caipirinha, eu me recuso.” Val também utiliza frequentemente expressões estrangeiras (principalmente a palavra hello, empregada em quase todas as suas frases).
“Me recuso a comer linguiça”
De acordo com o sociólogo Florestan Fernandes, a “revolução burguesa” no Brasil foi marcada pela permanência de determinadas práticas inerentes a sociedades aristocráticas. Sendo assim, nossa classe dominante sustentou diversos comportamentos típicos de sociedades pré-burguesas como, por exemplo, possuir um grande número de empregados domésticos. Desse modo, cada milionária do reality show da Rede Bandeirantes tem os seus serviçais de confiança. Val tem à sua disposição, vinte e quatro horas por dia, o visagista Duda Martins. Lydia possui vários seguranças particulares. Narcisa possui uma personal organizer exclusivamente para cuidar de seus pertences. Já Brunete tem duas empregadas, uma governanta, e um assistente: Ronaldo de Sá. Em uma cena, durante o primeiro episódio, Brunete insultou ostensivamente o assistente pelo simples fato de ele não ter encontrado uma das bonecas de sua coleção.
Aliás, uma das práticas preferidas da elite brasileira é ridicularizar a população pobre. Nesse aspecto, Val, apontada pelo público e pelas demais milionárias como a participante mais esnobe do programa, é insuperável. “Não gosto de pobre metido a besta”, afirmou a milionária durante o terceiro episódio. Segundo ela, “Angra não é igual ao Guarujá, que o povo vai de carro, lá você vai de avião ou de helicóptero, pobre lá não vai”. Em uma conversa com Débora Rodrigues sobre as idiossincrasias masculinas, Val declarou que o pior defeito de um homem é ser pobre. Noutra oportunidade, em um restaurante de Buenos Aires, Marchiori demonstrou mais uma vez o seu preconceito de classe: “Me recuso a comer linguiça. Nem quando era pobrinha. Linguiça é coisa de pobre.” Enquanto isso, do outro lado da tela, milhões de brasileiros passam fome ou estão subnutridos.
Lastimável contrassenso
Evidentemente, o passado humilde e o estilo de vida de Débora Rodrigues não deixariam de ser mencionados pelas outras participantes (entre outras profissões, ela já trabalhou como motorista de caminhão, babá e frentista). Para ser aceito pela high society não basta apenas possuir uma condição financeira favorável; é preciso, além do fator monetário, adotar certos hábitos e costumes inerentes à elite. Para Val Marchiori, a ex-militante do MST tem um “jeito macho de ser”. “Imagine a Débora no Miss Universo. Será que ela vai de botas?”, provocou. Ainda segundo Val, ir a um estádio de futebol, divertimento historicamente associado às classes populares, é “bem o perfil de Débora”. Em um passeio de barco com Brunete, em Angra dos Reis, a socialite novamente criticou a automobilista: “Nossa, só faltou a Débora aqui, mas isso é coisa de caminhoneira fazer, desmarcar.”
Como toda atração televisiva que busca alavancar os índices de audiência, Mulheres ricas apresentou várias trocas de amabilidades entre as participantes. Val e Brunete, durante uma viagem de avião regada a champanhe, teceram vários comentários negativos sobre Débora Rodrigues. Por sua vez, Débora abomina o exibicionismo de Val: “Eu compro uma coisa pra mim. Eu não compro para mostrar pros outros. Então, essa é uma diferença que nós [Val e Débora] temos.” Já Narcisa declarou: “Para ser Narcisa, Val tem que nascer de novo. Sou original, única, exclusiva” (diga-se de passagem, o egocentrismo de Narcisa causaria inveja em seu homônimo grego). Por outro lado, a loira retrucou à socialite carioca: “A Narcisa só fica: ‘Ai, que loucura! Ai, que delícia!’ e não fala sobre bulhufas nenhuma. Ela não dá continuidade no assunto. Eu acho que tudo tem o seu tempo, o de Narcisa já era.” Já Brunete não gosta do jeito imperativo de Val. Em compensação, Val chamou a arquiteta paulista de “barbie velha” e “supercarente”.
Em suma, o festival de extravagâncias exibido em Mulheres ricas não chegou a surpreender. Grande parte das pessoas que compõem a elite econômica brasileira realmente apresenta atitudes similares aos comportamentos das milionárias do reality show da Rede Bandeirantes. Lembrando um antigo provérbio, é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que uma “mulher rica” deixar de ser fútil. E assim se passaram os primeiros meses do ano na tela da TV brasileira: enquanto nas noites de segunda-feira cinco milionárias viviam seus contos de fadas, por outro lado os noticiários exibiam milhares de pobres (obliterados pelo poder público) que perderam seus pertences e vidas por causa das tragédias naturais ou foram expulsos de suas casas pela especulação imobiliária. Lastimável contrassenso.
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[Francisco Fernandes Ladeira é especialista em Ciências Humanas, Brasil: Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor de História e Geografia em Barbacena, MG]