Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

José Queirós

“A notí­cia inti­tu­lada ‘Artigo cien­tí­fico defende como acei­tá­vel ‘aborto pós-nascimento’’ (PÚBLICO, 3 de Março) e a ver­são ligei­ra­mente mais longa da mesma peça publi­cada na vés­pera no Público Online com o título ‘Artigo cien­tí­fico defende como moral­mente acei­tá­vel a morte de um recém-nascido’ sus­ci­ta­ram pro­tes­tos de vários leitores.

Domin­gos Hen­ri­que con­tes­tou o título esco­lhido: ‘O que é refe­rido como artigo ‘cien­tí­fico’ é um artigo de opi­nião’. João Bas­tos cri­ti­cou a edi­ção do texto: ‘O Público (…) não pode edi­tar uma notí­cia de tal teor sem a fazer acom­pa­nhar do seu con­tra­ponto, subs­crito por pes­soas que defen­dam o valor da vida, da dig­ni­dade humana e do pri­mado do direito’. Vários outros lei­to­res con­de­na­ram limi­nar­mente a pró­pria publi­ca­ção da notí­cia, acu­sando o jor­nal de dar espaço a teses ‘repug­nan­tes’ ou ‘criminosas’.

Na pers­pec­tiva da res­pon­sa­bi­li­dade edi­to­rial e da ética jor­na­lís­tica, que é aquela de que me ocupo, julgo que só é razoá­vel a crí­tica do pri­meiro lei­tor citado. Recordo alguns fac­tos, para tor­nar com­pre­en­sí­vel a ques­tão a quem não tenha lido a peça con­tes­tada. A notí­cia do PÚBLICO dá conta da polé­mica gerada por um artigo aco­lhido numa publi­ca­ção espe­ci­a­li­zada em ética médica, o Jour­nal of Medi­cal Ethics (JME), asso­ci­ado ao pres­ti­gi­ado Bri­tish Medi­cal Jour­nal. Uma polé­mica que ultra­pas­sou em pou­cos dias as fron­tei­ras dos cír­cu­los aca­dé­mi­cos, com a imprensa gene­ra­lista a divul­gar a tese exposta nesse artigo, cujo título — na tra­du­ção deste jor­nal, ‘Aborto pós-parto: por que deve o bebé viver?’ — tinha à par­tida todos os ingre­di­en­tes para cho­car múl­ti­plas sensibilidades.

O texto do JME é da auto­ria de Alberto Giu­blini e Fran­cesca Minerva, aca­dé­mi­cos espe­ci­a­li­za­dos na área da filo­so­fia apli­cada na uni­ver­si­dade aus­tra­li­ana de Mel­bourne, sendo a segunda tam­bém inves­ti­ga­dora do Cen­tro de Ética Prá­tica da Facul­dade de Filo­so­fia de Oxford. A sua tese cen­tral é a de que o que cha­mam ‘aborto pós-nascimento’ — um eufe­mismo para infan­ti­cí­dio, a que recor­rem para enfa­ti­zar a ideia de que o ‘esta­tuto moral’ do recém-nascido ‘é com­pa­rá­vel com o do feto’ — deve­ria ser per­mi­tido em todos os casos em que o aborto seja con­si­de­rado legí­timo. Não sendo pos­sí­vel repro­du­zir aqui a argu­men­ta­ção que sus­tenta essa tese (o artigo pode ser con­sul­tado atra­vés de hiper­li­ga­ção dis­po­ni­bi­li­zada na peça do Público Online), pode no entanto dizer-se que ela é apre­sen­tada como a con­clu­são lógica de três pre­mis­sas defen­di­das pelos auto­res e cita­das na notí­cia deste jor­nal. A saber: ‘O feto e um recém-nascido não têm o mesmo esta­tuto moral das pes­soas’; ‘é moral­mente irre­le­vante o facto de ambos serem pes­soas em potên­cia’; ‘a adop­ção nem sem­pre é no melhor inte­resse das pessoas’.

A par­tir des­sas pre­mis­sas, obvi­a­mente não con­sen­su­ais no plano ético, e desenvolvendo-as atra­vés de uma argu­men­ta­ção cuja raci­o­na­li­dade interna será em vários pon­tos dis­cu­tí­vel, Giu­blini e Minerva cons­troem um edi­fí­cio de apa­rente soli­dez no plano lógico para sus­ten­ta­rem que ‘matar um bebé nos pri­mei­ros dias não é muito dife­rente de fazer um aborto’. Uma tese tão seme­lhante à dos movi­men­tos pró-vida que gerou mal-entendidos (visí­veis por exem­plo na caixa de comen­tá­rios do Público Online), com opo­si­to­res a todos os cená­rios de aborto a sau­da­rem a divul­ga­ção do artigo do JME como uma forma de des­le­gi­ti­ma­ção moral de qual­quer inter­rup­ção volun­tá­ria da gra­vi­dez, o que não é, mani­fes­ta­mente, o que nele se defende.

Pela natu­reza do tema, pelo aceso debate que gerou, pela res­pei­ta­bi­li­dade da publi­ca­ção que o aco­lheu e até pela ‘qua­li­dade aca­dé­mica’ que vários espe­ci­a­lis­tas em bioé­tica, con­cor­dando ou dis­cor­dando dos auto­res, lhe reco­nhe­ce­ram (dos últi­mos faz parte o res­pon­sá­vel directo pela publi­ca­ção no JME, o clé­rigo e pro­fes­sor de ética médica Ken­neth Boyd), o artigo dos inves­ti­ga­do­res de Mel­bourne mere­cia cer­ta­mente ser noti­ci­ado, con­di­ção pré­via para ser deba­tido. Não pela novi­dade da sua tese cen­tral, já ante­ri­or­mente defen­dida por vários filó­so­fos con­tem­po­râ­neos. A defi­ni­ção de ‘pes­soa’ que guia as pre­mis­sas de Giu­blini e Minerva é deve­dora do norte-americano Michael Too­ley e a equi­pa­ra­ção moral do infan­ti­cí­dio ao aborto em casos de defi­ci­ên­cia extrema foi teo­ri­zada pelo influ­ente filó­sofo aus­tra­li­ano Peter Sin­ger, de quem várias obras sobre ética estão tra­du­zi­das em por­tu­guês. Os seus argu­men­tos sobre este tema podem ser con­sul­ta­dos num livro que publi­cou em 1988 (Should the baby live?),ins­pi­ra­ção óbvia, até no título, do artigo dos inves­ti­ga­do­res de Melbourne.

Estes foram no entanto mais longe, ao incluí­rem moti­vos de ‘von­tade’ ou ‘inte­resse’ da mãe ou da famí­lia, pre­vis­tos em diver­sas legis­la­ções sobre a inter­rup­ção volun­tá­ria da gra­vi­dez, na sua defesa da equi­pa­ra­ção moral entre aborto e infan­ti­cí­dio. Se a este novo ele­mento do debate se acres­cen­tar que a euta­ná­sia de recém-nascidos em casos com prog­nós­tico de extrema inca­pa­ci­dade fun­ci­o­nal ou sofri­mento insu­por­tá­vel é pra­ti­cada desde há alguns anos com cober­tura legal na Holanda (nas con­di­ções estri­tas for­ma­li­za­das no cha­mado ‘Pro­to­colo de Gro­nin­gen’, fruto da coo­pe­ra­ção entre médi­cos neo­na­to­lo­gis­tas e magis­tra­dos judi­ci­ais), parece-me indis­cu­tí­vel que estão reu­ni­das as con­di­ções de rele­vân­cia e actu­a­li­dade e o dever de infor­mar que jus­ti­fi­cam a notí­cia do PÚBLICO. Os lei­to­res que cri­ti­ca­ram a sua publi­ca­ção, manifestando-se cho­ca­dos com o tema, con­fun­di­ram men­sa­gem e mensageiro.

A notí­cia sin­te­tiza de forma com­pe­tente o artigo do JME e reflecte a polé­mica gerada, citando cien­tis­tas que clas­si­fi­cam de ‘defesa desu­mana da des­trui­ção de cri­an­ças’ a tese exposta por Giu­blini e Minerva. Não terá o ‘con­tra­ponto’ argu­men­ta­tivo, de opo­si­to­res a essa tese, que o lei­tor João Bas­tos con­si­de­rou indis­pen­sá­vel, nem isso seria exi­gí­vel. Uma peça infor­ma­tiva deste tipo não pode em regra abar­car o con­tra­di­tó­rio deta­lhado das opi­niões que noti­cia. Pode, e deve, é esti­mu­lar um con­fronto de ideias, pro­cu­rando uma plu­ra­li­dade de pers­pec­ti­vas acerca da polé­mica pro­vo­cada pela infor­ma­ção. Neste caso, a caixa de comen­tá­rios à notí­cia on line ser­viu, com algu­mas lamen­tá­veis excep­ções, o pro­pó­sito nobre de dar voz a um debate sério e argu­men­tado. A aber­tura do jor­nal a esse debate nas suas pági­nas não está em causa, como mos­trou a publi­ca­ção no pas­sado dia 10 de um pri­meiro artigo de opi­nião sobre o tema, na linha das cha­ma­das posi­ções ‘pró-vida’, assi­nado pelo juiz Pedro Vaz Patto.

No plano infor­ma­tivo, o ‘con­tra­ponto’ deverá concretizar-se em peças sub­se­quen­tes, se o PÚBLICO optar por man­ter aten­ção edi­to­rial ao tema. E seria útil que o fizesse, tanto pelas ame­a­ças que o caso fez pai­rar sobre a liber­dade no debate filo­só­fico como pelos desen­vol­vi­men­tos entre­tanto ocor­ri­dos. Deve­ria já ter sido noti­ci­ada, por exem­plo, a invul­gar carta aberta que Giu­blini e Minerva divul­ga­ram na sequên­cia da onda de crí­ti­cas pro­vo­ca­das pelo seu texto. Nela, pedem des­culpa a quem se tenha sen­tido ofen­dido pelo que escre­ve­ram, e ape­lam à com­pre­en­são das dife­ren­ças entre uma dis­cus­são aca­dé­mica e a ‘apre­sen­ta­ção enga­nosa’ que dela terão feito alguns media, bem como da ‘dis­tin­ção essen­cial’ entre a argu­men­ta­ção filo­só­fica e a pro­posta polí­tica de nor­mas legais. ‘Nunca pen­sá­mos suge­rir que o aborto pós-nascimento deve­ria tornar-se legal’, ale­ga­ram, acres­cen­tando que as leis não se ins­pi­ram ape­nas em ‘argu­men­tos éticos racionais’.

Por fim, julgo que a esco­lha dos títu­los para a notí­cia do PÚBLICO merece repa­ros. Não tanto pelo aco­lhi­mento dado na edi­ção impressa à fór­mula ‘aborto pós-nascimento’, em si mesmo con­tra­di­tó­ria para o senso comum, mas que vem gra­fada entre aspas e res­peita a ter­mi­no­lo­gia defen­dida no artigo do JME. É mais dis­cu­tí­vel que se titule, como se fez na edi­ção on line, que esse artigo ‘defende como moral­mente acei­tá­vel a morte de um recém-nascido’, gene­ra­li­za­ção que o texto noti­ci­ado está longe de consentir.

O mais cri­ti­cá­vel, porém, é o que foi assi­na­lado pelo lei­tor Domin­gos Hen­ri­que. Não é rigo­roso desig­nar como ‘artigo cien­tí­fico’ um texto de refle­xão filo­só­fica. Os seus auto­res não trou­xe­ram novos conhe­ci­men­tos ou des­co­ber­tas à ciên­cia, não for­mu­la­ram nem tes­ta­ram hipó­te­ses de acordo com o método cien­tí­fico. São estu­di­o­sos da ética apli­cada, que pro­cu­ra­ram sis­te­ma­ti­zar argu­men­tos — bons ou maus, mas só escru­ti­ná­veis no plano da razão filo­só­fica —, sobre o tópico alta­mente con­tro­verso da acei­ta­bi­li­dade moral do infan­ti­cí­dio em deter­mi­na­das cir­cuns­tân­cias. O que escre­ve­ram foi um texto opi­na­tivo, o que pro­pu­se­ram foi um debate moral. As pala­vras têm o seu peso. O uso do adjec­tivo ‘cien­tí­fico’ é no caso enga­noso, e pode até ser visto como con­ces­são ao sen­sa­ci­o­na­lismo. Tem por única ate­nu­ante referir-se a um texto dado à luz numa publi­ca­ção que (tam­bém) aborda temas de ciência.”