Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Para o inferno a mídia e seu Natal

Este mês de Natal é uma boa oportunidade para pensarmos e repensarmos nossas próprias vidas. No entanto, muito antes de divagar sobre o significado da existência humana num plano filosófico distante, é preciso questionar essa realidade que enfrentamos diariamente, com o devido cuidado para não cair no discurso superficial.

Estou falando de uma realidade em que 2,8 bilhões de pessoas sobrevivem com dois dólares por dia e 1 bilhão de seres humanos não têm acesso à água potável, de acordo com o relatório da WorldWatch de 2004. Trata-se de uma situação alarmante, escandalosa, mas que parece não sensibilizar aqueles que governam o mundo, a não ser quando promovem campanhas que apenas remedeiam a situação com dinheiro deduzido do Imposto de Renda. Para poderem dormir com a consciência tranqüila.

Essa omissão generalizada só aprofunda a desigualdade, campo onde o Brasil ostenta o segundo lugar no mundo. E nada de concreto está sendo feito para mudar essa realidade, que piora a cada dia. Segundo o Banco Mundial, em 1950 a renda per capita dos países mais ricos era 35 vezes maior do que a dos países mais pobres. Em 1992, essa diferença havia subido para 72 vezes. Ao final deste ano, será de 135 vezes. Uma pesquisa divulgada este mês (05/12) pela ONU ratifica o quadro desolador: os 2% mais ricos do mundo controlam metade de toda a riqueza produzida no planeta, enquanto os 50% mais pobres dividem 1% da riqueza.

Quem não consome é descartável

Naturalmente, um desenvolvimento calcado em bases desiguais só poderia resultar numa sociedade neurotizada e violenta, cujos valores se amesquinham e se superficializam progressivamente. Para constatar isso, basta sair às ruas das grandes cidades e olhar à volta.

A violência mais visível que assola os grandes centros urbanos não se origina espontaneamente. Ela deriva, em sua maior parte, dessa desigualdade administrada por governos e corporações e é potencializada pela publicidade capitalista. Esta diz a todo instante que se o sujeito não usar o tênis da moda ele será um fracassado, de modo que não deveria causar surpresa quando alguém mata por um nike ou um adidas. Essa surpresa meio babaca da mídia diante dos arrastões no Leblon não tem sentido, a não ser o de revelar a hipocrisia típica dos canalhas. O malandro não se arrisca a levar um couro da polícia apenas para cobrir os pés com borracha sintética; ele se arrisca por um objeto de desejo elaborado pela própria mídia.

Jamais será possível alcançar a paz enquanto houver exploração.

Entre as diversas formas de violência que oprimem o ser humano, umas são deixadas de lado e outras são bem divulgadas. Quem faz a seleção é a mídia comprometida com o sistema. Assim, qualquer carteira batida em Ipanema ganha destaque, enquanto a política de extermínio de jovens favelados é escamoteada. Pela lógica do tal mercado, quem não pode consumir torna-se descartável.

Uma espiral destrutiva

O ritmo de vida imposto pelo sistema capitalista – e pelos sistemas pretensamente capitalistas – não é compatível com a natureza do ser humano. Tempo não é dinheiro, a não ser que se queira encontrar um atalho para o infarto ou engrossar as estatísticas das doenças mentais (depressão, pânico, anorexia etc.), que crescem alucinadamente. O mundo tem 1 bilhão de obesos e outro bilhão de desnutridos. Isso faz algum sentido?

Muita gente boa se tranqüiliza com a constatação de que o capitalismo é autofágico, achando que um belo dia ele vai se autodestruir. Pura ilusão. O capitalismo se alimenta do caos que ele próprio estabelece. Na mesma proporção em que trabalha para concentrar cada vez mais a renda. As crises que surgem são previstas – e são também boas oportunidades de negócios.

O enredo da acumulação capitalista encerra uma espiral destrutiva, em que as corporações operam sob a espada de Dâmocles: ou aumentam sua produtividade ou são engolidas pela concorrência. De modo que mesmo diretores bem intencionados estarão sujeitos a esta regra, que freqüentemente exige a demissão de funcionários e submete os restantes a todo tipo de exploração que se possa imaginar.

Big players almoçam juntos

E é bom deixar claro: aquilo que existe hoje nem chega a ser capitalismo na maioria dos países, visto que não há concorrência, transparência e outros requisitos básicos dessa modalidade de exploração sob controle. Estamos muito mais para uma espécie de feudalismo onde meia dúzia pode tudo e a maioria não pode nada, para usar uma frase de efeito de um ex-sindicalista brasileiro.

Economistas neoliberais, além de prometerem o paraíso num futuro que só Deus sabe quando chegará, costumam afirmar que o desemprego não é interessante para o capitalismo. Eles dizem que quanto mais pessoas empregadas, melhor, pois o consumo tende a aumentar. E quanto menos o Estado intervier na economia, mais empregos serão criados, já que o tal mercado possui a capacidade mágica de se auto-regular.

Esse raciocínio até faria sentido, caso não negasse a essência do próprio capitalismo: reduzir custos e maximizar as vendas – sempre. Quando a corporação demite funcionários, ela não apenas reduz seu custo de produção, mas aumenta o número de desempregados. E a mera existência desse contingente de reserva é o suficiente para criar um ambiente favorável à exploração do trabalhador. Em sã consciência, qual corporação vai deixar a jugular exposta em nome do ‘desenvolvimento sustentável’? Os EUA já avisaram: não aderem ao Protocolo de Kioto. E convém não esquecer que os big players almoçam e jantam juntos.

Solidariedade e caridade

Que sentido pode haver num planeta onde habitam 6,5 bilhões de pessoas, cuja produção de comida é suficiente para alimentar 11 bilhões de seres humanos, mas que ainda assim 1,3 bilhão desses passam fome, segundo dados da ONU? Que sentido pode haver num país como o Brasil, dono de uma das maiores riquezas naturais do mundo, se a cada 12 minutos uma criança morre por desnutrição?

O Natal marca o nascimento de Jesus Cristo, alguém que lutou contra a desigualdade, expulsou os capitalistas do templo e foi preso por isso. Foi torturado por isso. Foi crucificado por isso. Jesus foi um preso político, é sempre bom lembrar – sobretudo nessa época em que filmes e propagandas de presentes caros despolitizam o significado do Natal.

Jesus Cristo também nos ensinou a solidariedade, que depois a Igreja capitalista tentou transformar em caridade. São coisas diferentes. A caridade é vertical, ela humilha quem recebe. Por outro lado, solidariedade é estar ao lado de quem precisa. É pegar chuva, sentir fome, frio, medo, apenas para confortar alguém com sua presença. E se a caridade pode ser cotada pelo mercado, além de aliviar consciências em troca de moedas, a solidariedade desconhece tais valores.

Informações removem montanhas

Enquanto tentam reduzir o significado do Natal a uma corrida maluca por presentes, quero deixar registrado o seguinte: pro inferno esse sistema e sua mídia que incentivam o consumo desenfreado enquanto milhões passam fome.

E tem outra coisa: por mais que sua máquina trabalhe a todo vapor para impor um comportamento alienado, haverá sempre aqueles que, em vez de presentes caros, trocam abraços sinceros. Aqueles que não cedem aos apelos consumistas e compreendem que o mais importante é sentir o coração do companheiro batendo, bem pertinho do seu peito. Onde há a vida que respeita a vida. E é essa vida, esse carinho, essa ternura que transformarão o planeta num lugar mais justo para se viver.

Judas traiu Jesus com uma informação: um beijo. Com um beijo, Judas informou ao exército romano quem era o líder da revolução. Do mesmo jeito, a mídia corporativa trai a humanidade todo santo dia. E faz isso ao veicular informações mentirosas, tendenciosas, envenenadas. Ao criminalizar os pobres. Ao omitir a exploração do país. Ao defender o imperialismo que ceifa vidas inocentes. E de tantas outras maneiras, geralmente tão doces e sutis quanto um beijo. Foi assim neste ano que se encerra e provavelmente será assim no ano que se aproxima.

Contra essa traição cotidiana, no entanto, haverá sempre – sempre – quem combata as mentiras e se insurja contra a exploração dos povos. Esses serão também portadores das informações comprometidas com a vida, com o ser humano. E por isso, apenas por isso, esses portadores serão revolucionários. Tão revolucionários quanto Jesus Cristo, pois as informações que levam e trazem podem remover montanhas. Basta que acreditem nisso com todas as suas forças.

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Editor do Fazendo Media