Em sua própria história, Millôr flertava com o humor, ainda que involuntariamente. Carioca do Méier, ele nasceu em 16 de agosto de 1923, mas foi registrado em maio do ano seguinte. Julgava se chamar Milton Viola Fernandes mas, adolescente, descobriu que, graças a uma caligrafia duvidosa, fora registrado como Millôr. A data, aliás, também era incerta: 16, 27 ou 28 de maio ou agosto. “Meu amigo Frederico Chateaubriand sempre repetia, quando se falava que alguém estava ‘muito moço’, isto é, aparentava menos que a idade que tinha: ‘Idade é a da carteira’. Isto é, não adianta ter qualquer esperança contra a cronologia. No meu caso talvez a carteira esteja (um pouquinho) a meu favor”, dizia.
Com apenas um ano de vida, perdeu o pai. Nove anos depois, acontece a morte da mãe. “Sozinho no mundo tive a sensação da injustiça da vida e concluí que Deus em absoluto não existia. Mas o sentimento foi de paz, que durou para sempre, com relação à religião: a paz da descrença.”
Assim, iniciou a vida profissional ainda jovem. Aos 10 anos, vendeu o primeiro desenho para a publicação O Jornal, do Rio de Janeiro. Recebeu dez mil réis. Em 1938 começou a trabalhar como repaginador e contínuo n’O Cruzeiro, a maior revista da época. Assumiu a direção em 1943, quando também iniciou a publicação da seção “Poste Escrito”, agora assinada por Vão Gôgo. De 110 mil exemplares, a tiragem de O Cruzeiro saltou para 750 mil. “O sucesso de O Cruzeiro faz os jornalistas virarem notícia. Na redação, entrevista para o rádio, uma espécie de televisão da época, muito melhor, porque sem imagem”, comentava.
A ira dos conservadores
O êxito também rendeu financeiramente, a ponto de permitir que Millôr comprasse seu primeiro apartamento em 1954. “Era num lugar mais ou menos distante, chamado Vieira Souto. Quando a grã-finada soube, correu atrás de mim e o lugar virou ‘status’, o metro quadrado mais caro do mundo.” Dois anos depois, dividiu a primeira colocação na Exposição Internacional do Museu da Caricatura de Buenos Aires com o célebre desenhista norte-americano Saul Steinberg.
Várias de suas frases se tornaram clássicas, assim como as histórias que gostava de inventar. Como a de ser um dos implementadores do frescobol, no bairro de Ipanema, no mesmo ano de 1957. “Eu me lembro que antes apareceu uma besteira chamada la pelote basque sans fronton. Me autoproclamei campeão do frescobol do posto 9. Mantive o título por muito tempo: quando alguém jogava melhor do que eu, eu dizia que ele era do posto 8.”
Dispensou o pseudônimo Vão Gôgo em 1962, quando começou a assinar apenas como Millôr os textos de O Cruzeiro. Deixou a revista no ano seguinte por conta de uma polêmica: a publicação de A Verdadeira História do Paraíso despertou a ira de conservadores católicos, que pressionaram a direção da revista. Aproveitando uma viagem de Millôr a Lisboa, a revista saiu com um editorial não assinado em que o escritor era acusado de ter publicado a história sem conhecimento da redação, da secretaria e, consequentemente, da direção do semanário.
Peças de teatro, humor e poesia
Em 1964, preparou o lançamento da revista quinzenal O Pif-Paf, que se tornaria outro de seus clássicos. “Em 1979, o serviço de informações do Exército consideraria a publicação como o ponto de partida da imprensa alternativa no Brasil. Ainda bem, porque fecharam a revista no oitavo número e eu fiquei devendo 21 mil cruzeiros. Meu valor na praça, então, era mais ou menos 500 cruzeiros mensais”, ironizava. No ano seguinte, 1965, ocorre a encenação de Liberdade, Liberdade, sua peça dirigida por Flávio Rangel que criticava abertamente o regime militar instaurado no ano anterior. A censura logo vetou o texto. Em 1969, Millôr tornou-se um dos fundadores d’O Pasquim. “Parecia até que o país existia e que certa socialização, confundida com uma fugidia fraternidade, era possível.”
Premonitório, deu o aviso logo no primeiro número: se o jornal fosse independente, seria fechado – se não fosse fechado, era porque deixara de ser independente. O fato é que O Pasquim abriu uma brecha na imprensa brasileira ao utilizar a inteligência e o deboche como resistência à rigorosa censura imposta pelo regime militar.
Nos anos seguintes, intensificou a escrita de peças de teatro, textos de humor e poesia. Também exerceu a função de tradutor, vertendo do inglês e do francês, várias obras, principalmente peças de teatro, entre estas clássicos de Sófocles, Shakespeare, Molière, Brecht e Tennessee Williams.
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[Ubiratan Brasil é jornalista e escritor]