As metáforas são perigosas, especialmente nessa matéria. Mesmo assim, vale uma figura. Uma só.
A corrupção é uma hidra de muitas cabeças, como muita gente diz, mas duas são as cabeças dominantes: uma é de esquerda e a outra, de direita. Ambas se estranham, encaram-se com ares de ódio espelhado, agridem-se às dentadas, mas acabam por aceitar a convivência. Elas supõem que comandam o corpanzil desse gigante de proporções indefiníveis em que estão plantadas pelo pescoço, mas a verdade é que vão a reboque. As duas seguem juntas a trilha tortuosa que a hidra escolhe sozinha, sem consultá-las. Lá vão elas, sacolejando no dorso de uma razão sem razão, com a pose de quem tenta passar a ilusão de controlar o destino. Lá vão elas, às vezes falantes, outras vezes rabugentas, fingindo dominar o diabo que as carrega.
Ponto. Fim da metáfora – ou quase.
Quando um infeliz que se pensa de esquerda é interceptado com maços de dólares na cueca, seu gesto é imediatamente protegido por um cordão de isolamento imaginário, uma blindagem ideológica. Uma parte considerável dos seus correligionários logo faz circular uma explicação de ordem tática. O começo dessa explicação consiste em pôr a responsabilidade no sistema – palavra que, como bem sabemos, é um curinga nos panfletos de todo gênero. Segundo esse discurso, não há pessoas corruptas na esquerda, só o que existe é um sistema corrupto “que precisamos administrar se quisermos tomar o poder, companheiro”. Ou seja, sem lançar mão das armas obscuras não se vence o inimigo de classe. Logo, o militante de esquerda que negocia dia e noite com a corrupção pode até ter as mãos sujas, mas mantém o coração e a consciência limpíssimos, imaculados. Vai roubar ou, pelo menos, vai deixar roubar, mas depois ganhará honras de herói. Eis a justificativa moral que habita a cabeça canhestra da hidra.
Entendida e explicada
Agora olhemos para a direita. No caso brasileiro, é ela a mãe do patrimonialismo – que, por sua vez, é o pai dos corruptos e dos corruptores. Se recuarmos no tempo, e nem é preciso recuar tanto, veremos que nas hostes do conservadorismo pátrio a política não tem sido outra coisa senão a atividade profissional de se apropriar do que é público para fins privados. Como o Estado precedeu a sociedade na formação nacional, foi do primeiro que se pilhou a matéria-prima para vertebrar a segunda, que veio sendo gerada e ordenada à imagem dos sonhos (e pesadelos) mais regressivos. Nesse percurso, tomar para si o que deveria ser de todos se foi tornando o pressuposto da própria sustentabilidade da ação política. Privilégios hereditários, benesses, sinecuras e monopólios inexplicáveis decorrem, todos, daí. Dentro do crânio direitista da hidra metafórica, o poder só se deixa domar por aquele que tem a ousadia de tomar posse pessoal (e familiar) do poder: manda (no Estado) quem é dono ou quem faz as vezes de dono (do Estado). O poder é como o dinheiro: não aceita desaforo. Para exercê-lo é preciso usufruir o erário. Pessoalmente. Fisicamente. Diretamente. Sem cerimônia. A justificativa moral para a corrupção no imaginário da direita está aí: ela é a indispensável fonte extraoficial para sustentar a dispendiosa fachada oficial da vida pública – e para compensar patrimonialmente o agente e seus apoiadores. É pegar ou largar.
A coisa não para aí. Ela é mais complicada.
Quando vista em retrospectiva, a nossa hidra pode ser entendida e explicada, embora repugne. Agora, quando posta em perspectiva, na direção do futuro, prenuncia um quadro bem pior, que aponta para o colapso. À esquerda, a corrupção principia como um atalho pragmático, aparentemente eficaz. Mas logo ela se converte num fim e, tornada fim, nega e aniquila qualquer projeto de justiça social. À direita, ela principia nos hábitos ancestrais e depois, hipertrofiada, se converte na tal esperteza que devora o dono: tende a matar o hospedeiro, exaurir o ambiente e calcinar a terra.
Capital sem lei
Daí a sensação, que muitos vêm manifestando nestes dias, com notas de moralismo ou de realismo, de que hoje é imperioso conter a corrupção, fazê-la regredir. Mas como?
Uma parte, óbvia, caberia ao próprio aparelho de Estado, desde que ele saiba proteger-se minimamente das quadrilhas. Ao Estado, então, caberiam a repressão policial e o devido julgamento legal. Essa parte vem sendo feita, mas vagarosamente. Agora mesmo, por exemplo, foi uma investigação da Polícia Federal que começou a desbaratar conexões múltiplas entre o senador Demóstenes Torres, Carlinhos Cachoeira e mais uma penca de autoridades. A outra barreira é a impunidade. A propósito, o julgamento do mensalão ficou para quando mesmo?
Mas é preciso mais. É necessário desmontar, no plano do discurso, as justificativas morais silenciosas que validam os negócios ocultos à direita e à esquerda. Trata-se, com o perdão da reincidência na metáfora, de cortar as duas cabeças da hidra. Só isso poderá renovar a cultura política. Isso, porém, não vem sendo feito. No fundo, muitos dos agentes políticos, no Brasil, ainda acreditam que a corrupção, no curto prazo, funcione. À boca pequena, chamam-na de mal necessário. Ignoram que, uma vez acionada, ela passa a governar o processo, o que significa, hoje, sufocar a normalidade institucional e a própria política. O corruptor e o corrupto se acreditam despachantes um do outro, algo como “facilitadores”. Na verdade, são sequestradores da agenda pública.
Se formos capazes de olhar a hidra por esse prisma, veremos que as duas cabeças que nela despontam, a de esquerda e a de direita, são sócias. Xifópagas. Alimentam-se uma à outra. Vivem disso e para isso. Perderam-se de seus programas públicos.
A corrupção é o capital sem lei. Todos os que a invocam, ainda que marginalmente, viram seus servidores. Sem exceção. Sem uma única exceção.
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[Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP e da ESPM]