Quebrando uma série de preconceitos, no século 19 a imprensa carioca teve o interesse despertado pelas crônicas carnavalescas e, com essa iniciativa, tornou-se a principal promotora do carnaval como a maior manifestação cultural popular do País. Na época, as escolas de samba ainda não eram o xodó da mídia e as agremiações carnavalescas que mais se beneficiaram da nova situação foram os ranchos. Concorrendo com as grandes sociedades e os cordões, eles passaram a ser aceitos pela classe dominante e saborearam um reinado que durou até a década de 1940.
Quando a imprensa percebeu que a crônica carnavalesca vendia jornal, logo começaram a surgir especialistas na cobertura da festa. Esses profissionais, na verdade, tinham ‘um pé no jornal e outro nos terreiros das escolas de samba’, como afirma o pesquisador Eduardo Granja Coutinho, autor do livro Os cronistas de Momo – imprensa e carnaval na Primeira República (Editora UFRJ). Muitos eram negros, oriundos das comunidades das agremiações, ou repórteres policiais e esportivos. Com grande afinidade com os ambientes populares, cumpriram o papel de mediadores do encontro da elite com a classe menos favorecida.
Eduardo Coutinho lembra que, até aquele momento, em que adquiriram um lugar de destaque ‘nas páginas da classe média’, o samba e seus componentes ainda eram reprimidos pela polícia:
– As crônicas carnavalescas tiveram um papel importante na legitimação social da cultura explosiva (e desordeira) que o carnaval representava, para romper com os cordões e os preconceitos da elite.
Carnaval civilizado
Segundo Coutinho, as crônicas de José de Alencar no rodapé de primeira página do Correio Mercantil, em 1854, foram os primeiros sinais de que a imprensa desejava participar da organização do carnaval – então considerado pela sociedade dominante como festa de mau gosto, que precisava ser civilizada. No carnaval de 1926, o jornal Correio da Manhã e a revista O Cruzeiro participaram intensamente da festa, organizando palanques e concursos carnavalescos. Era o início de uma disputa – na qual mais tarde predominou o Jornal do Brasil – pelo monopólio da divulgação e do ‘ordenamento’ de um evento de massa, de acordo com os ideais herdados da Belle Époque.
As crônicas funcionavam como uma espécie de campanha de ‘civilização’ da festa. Por meio de notas e editoriais, os veículos de imprensa reprovavam as bagunças promovidas pelo entrudo, a barulheira dos zé-pereiras e brincadeiras como as chamadas guerras às cartolas, em que os foliões arremessavam limões-de-cera nos homens que se apresentavam com o elegante adereço.
Apesar das críticas, o evento mostrou ter grande apelo popular e veículos como O Paiz, Gazeta de Notícias e Jornal do Brasil começaram a dedicar espaços cada vez mais privilegiados ao carnaval. A Gazeta chegou a ser considerada pela escritora Eneida ‘a mais carnavalesca das folhas da imprensa carioca’ e o JB – que então já inovava com quadrinhos, suplementos coloridos e uma página inteira de esportes – criou uma coluna especialmente dedicada à festa.
A vez do samba
O período áureo da crônica carnavalesca ocorreu nos anos 30, quando Getúlio Vargas assumiu o poder e liberou a propaganda nas rádios. Com isso, abriu-se uma porta para o carnaval ser aceito pelo Estado e incorporado como cultura de massa. Nessa fase já haviam despontado na imprensa carioca diversos cronistas carnavalescos, entre eles Francisco Guimarães, o Vagalume, considerado o patrono da categoria; Mauro de Almeida, o Peru dos Pés Molhados, que ganhou notoriedade como co-autor do samba ‘Pelo telefone’; e Jota Efegê.
Dos três, Vagalume era o mais prestigiado. Iniciou a carreira jornalística no JB, de onde se transferiu para A Tribuna, para escrever a coluna ‘Ecos noturnos – notícias da madrugada’. Trabalhou também na Folha Carioca e colaborou com diversos outros veículos. Em 1933, lançou o livro ‘Na roda de samba’, em que conta histórias que ouviu como um dos primeiros repórteres a escrever sobre os morros da cidade:
– Foi ele quem, em 1910, apareceu como o paladino das pequenas sociedades, o cronista militante da cultura negra que se bateu contra a repressão ao carnaval proletário da Cidade Nova, da Zona Sul e dos subúrbios – diz Coutinho.
Jota Efegê foi um dos ‘sobreviventes’ da crônica carnavalesca iniciada na Primeira República. Começou na imprensa escrevendo versos para o Jornal das Moças, em 1919. Mas foi no antigo Diário da Noite, com as crônicas carnavalescas, que se tornou um dos maiores memorialistas do carnaval carioca, passando depois por O Jornal, Noite Ilustrada, Jornal do Brasil e O Globo. Destacou-se também como um dos mais importantes pesquisadores da cultura popular do País, sobre a qual reuniu fatos e personagens registrados em livros como A cabrocha, Ameno Resedá, o rancho que foi escola e Figuras e coisas da música popular brasileira, editado em dois volumes pela Funarte, em 1982.
Em 1932 foi lançado o primeiro concurso de escolas de samba, promovido pelo Mundo Esportivo, de Mário Filho – que teve a idéia para que seu jornal não perdesse a atenção dos seus leitores durante o recesso dos torneios de futebol. No ano seguinte foi a vez do Globo promover um certame de escolas de samba e, em 35, A Nação apoiou o primeiro desfile das escolas oficializado pela prefeitura.
Perda de estilo
As mudanças ocorridas no carnaval a partir dos anos 1940 – quando sua organização oficial passou a ser responsabilidade do Estado – fizeram o noticiário especializado ir perdendo o estilo inaugurado na década anterior. Os jornais não deixaram de se envolver na promoção dos bailes, desfiles e concursos, mas mudaram o formato de seus noticiários e acabaram iniciando um processo de esvaziamento das crônicas carnavalescas, que mal resistiram até os 1970.
O jornalista Rubem Confete – que há 27 anos comanda um programa de samba na Rádio Nacional – lamenta que hoje as crônicas carnavalescas estejam ausentes dos jornais:
– É uma pena, pois a figura do cronista de carnaval chegou a ser tão importante que, em 1925, foi fundado o Centro de Cronistas de Carnavalescos, transformado, em 43, na Associação dos Cronistas Carnavalescos (ACC). Por trás dessa iniciativa estavam brilhantes jornalistas, com muita vivência no ambiente do samba, como os companheiros Sebastião Copeba, do Diário Carioca, Ednoel Silva, do Jornal do Commercio, e Aroldo Bonifácio e Irênio Delgado, do A Manhã.
Rubem Confete começou a escrever crônicas carnavalescas na década de 50 e afirma que foi graças ao trabalho de antigos companheiros, como Mauro Ivan, Juvenal Portela, Irênio Delgado, Aroldo Bonifácio, José Carlos Rego e Graveto, que o samba deixou de ser encarado como uma cultura marginal. O jornalista – que este ano ganhou homenagem da Banda da Rua do Mercado – diz que ‘o trabalho da imprensa foi fundamental nesse processo de alforria’ e faz uma observação importante sobre um fenômeno ocorrido a partir dos anos 1970:
– Nos jornais de antigamente, os personagens principais das matérias eram os componentes oriundos das comunidades que estão por trás da origem das escolas. Com a chegada de Joãosinho Trinta, porém, a imprensa mudou o foco do seu noticiário e passou a privilegiar a figura do carnavalesco. O jornalista de hoje passou a conviver com a classe média infiltrada nas escolas de samba e, com isso, tirou o espaço dos verdadeiros sambistas das páginas dos jornais.
Para o jornalista e historiador Sérgio Cabral, algumas das melhores coisas que ocorreram na história do carnaval do Rio foram criadas pela imprensa. Cita como exemplo os desfiles dos ranchos promovidos pelo Jornal do Brasil na década de 1930, o concurso do Rei Momo criado pelos cronistas de A Noite e o primeiro concurso de escolas, inventado pelo Mundo Esportivo em 1932.
Durante muitos anos, Cabral acompanhou de perto as escolas, subindo o morro e ouvindo histórias de gente ilustre como Cartola e Paulo da Portela que acabaram registradas no livro As escolas de samba do Rio de Janeiro (Editora Lumiar). Sua estréia como cronista carnavalesco aconteceu no JB, onde tinha uma página inteira para falar de samba:
– Minha coluna ajudou o compositor Ismael Silva a vencer o concurso de Cidadão Samba, em 1961 – lembra.
Em relação ao noticiário carnavalesco atual, ele faz as mesmas críticas de Rubem Confete, reclamando que agora os carnavalescos e madrinhas de bateria viraram as vedetes:
– Essa questão surgiu no início dos anos 70, quando a imprensa passou a falar do carnavalesco, figura que nas escolas virou o poderoso chefão, passando a frente de todos os sambistas. A situação cresceu a tal ponto que, hoje, pessoas comuns não sabem dizer quem é o diretor de bateria de uma escola – um fenômeno que eu, particularmente, considero uma grande perda para o noticiário de carnaval.
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Repórter do ABI Online