Na terça-feira (3/4), o jornal Folha de S.Paulo publicou uma interessante matéria, assinada por Ricardo Gallo, sobre o caso de um estudante que foi perseguido por não rezar na sala de aula. O fato ocorreu na Escola Estadual Santo Antônio, localizada no município mineiro de Miraí (terra do saudoso cantor Ataulfo Alves) e envolveu Ciel Vieira, aluno do 3º ano do ensino médio, e a professora de geografia, Lila Jane de Paula. Segundo a reportagem, Lila resolveu iniciar as suas aulas rezando o pai-nosso com todos os alunos e Ciel, ateu há dois anos, permaneceu em silêncio durante a oração. Ao notar a reação negativa do estudante, a docente teria dito que “um jovem que não tem Deus no coração nunca vai ser nada na vida”.
Posteriormente, aluno e professora discutiram e o caso foi levado para a direção da escola. “Eu disse que o que ela fazia era impraticável segundo a Constituição. […] Moramos num país laico e regido por leis que deveriam ser cumpridas. E essa professora disse que essa lei não existia […] e disse, em tom irônico, que se me sentisse incomodado com os atos, que poderia me retirar da sala enquanto rezavam”, defendeu-se Ciel. Não obstante, a resistência à oração fez Ciel ser vítima de bullying de outros colegas de classe: “Comentários surgiram, dizendo que eu era do demônio”, salientou.
Por fim, a diretoria da escola decidiu que a professora de Geografia não daria mais a primeira aula para Ciel. “Resolveram o meu problema e jogaram o resto para baixo do tapete”, questionou o aluno, demonstrando um senso crítico incomum para a sua idade. Em contrapartida, Lila Jane de Paulanão quis se pronunciar sobre o ocorrido. A informação recebida pela reportagem da Folha de S.Paulo foi que ela queria se preservar. Por sua vez, a inspetora encarregada de fiscalizar a escola, Joana D’Arc Rocha e Silva, disse que “rezar no início da aula é um hábito de muitos anos da professora [Lila] que ninguém nunca criticou”.
Fanáticos religiosos
Diante dos fatos é preciso fazer algumas colocações. De acordo com a Constituição Federal, promulgada em 1988, o Estado brasileiro é oficialmente laico. Portanto, “é vedado à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança”. Já no Estatuto do Magistério de Minas Gerais consta que “constituem transgressões passíveis de pena, por exemplo, o ato que resulte em exemplo deseducativo para o aluno e a prática de discriminação por motivo de raça, condição social, nível intelectual, sexo, credo ou convicção política”.
Por outro lado, a afirmação “um jovem que não tem Deus no coração nunca vai ser nada na vida”, além de ser intolerante e antiética (pois constrangeu um aluno na frente dos seus colegas de turma), não condiz à realidade. Ora, José Saramago, Karl Marx, Friedrich Nietzsche, Charles Chaplin, Carl Sagan, Jean-Paul Sartre e Herbert de Souza também eram ateus e nem por isso deixaram de ser “alguém na vida”. Muito pelo contrário, foram excelentes profissionais em suas respectivas áreas. Em contrapartida, Adolf Hitler, Mussolini e Jim Jones, cristãos fervorosos, foram responsáveis pelas mortes de milhões de seres humanos. Será que agir de forma correta depende intrinsecamente de “ter Deus no coração”?
Em última instância, como professor de geografia, posso afirmar, com absoluta certeza, que rezar o pai-nosso, com todo respeito aos cristãos, não faz parte, em hipótese alguma, do programa didático da disciplina. Se Ataulfo Alves tinha boas razões para sentir saudades da “professorinha” que lhe “ensinou o bê-á-bá” (conforme cantava na música “Tempos de Criança”), décadas depois, na mesma Miraí, Ciel Vieira possui vários motivos para abominar o conteúdo das suas aulas de geografia. Infelizmente, fanáticos religiosos travestidos de professores secundários contribuem peremptoriamente para manchar a (já desgastada) imagem da educação brasileira.
***
[Francisco Fernandes Ladeira é especialista em Ciências Humanas, Brasil: Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor de História e Geografia em Barbacena, MG]