Günter Grass, escritor, dramaturgo e artista plástico nascido em 1927 na cidade de Gdansk, e hoje radicado na região de Schleswig-Holstein, no norte da Alemanha, em seus poemas e teses sempre manteve viva a memória das atrocidades cometidas pela Alemanha durante os 12 anos do nacional-socialismo de Adolf Hitler. Era ao mesmo tempo exemplo e testemunho para toda uma geração. Com o romance Tambor (em alemão Die Blechtrommel), adaptado para o cinema e com um Oscar em 1980, como melhor filme estrangeiro, Grass alcançaria fama mundial, que seria coroada com o Prêmio Nobel de Literatura em 1999.
Social-democrata declarado e sempre com sua marca registrada, o cachimbo, apoiou a candidatura do também social-democrata e ex-chanceler Gerhard Schröder, no final dos anos 1990, numa época em que a Alemanha via em Schröder um “novo estilo político” depois dos exaustivos 16 anos da era Helmut Kohl. Grass sempre foi interpretado como uma referência ética e moral, sempre bem-visto e quisto por políticos, não só em épocas de eleição. Sua presença na mídia era rara, mas bem colocada em dose, intensidade e formato, causando sempre resultados positivos, não só no número de livros vendidos.
Em 2006, uma verdadeira bomba estourou quando no contexto do lançamento de seu livro Descascando a cebola, Grass pela primeira vez confessou ter feito parte das Waffen-SS, tropa de elite criada para a proteção pessoal de Adolf Hitler. A notícia, que durante semanas ocupou as páginas dos principais jornais, colocou a opinião pública frente a um dilema: considerar essa verdade tardia como um deslize, ou questionar toda a trajetória de Grass, já que até então em sua biografia ele declarava ter sido convocado como soldado – ou seja, mentiu durante décadas para a opinião pública e, o que é pior, para seus fiéis leitores.
Perguntado na época o porquê da declaração naquele momento (e não antes), foi lacônico: “Eu tinha que botar isso para fora”. Essa atitude foi vista como o intuito de um escritor já em idade avançada querer colocar mais verdade em sua própria biografia. A atitude foi perdoada. Jamais esquecida.
Segundo tiro no pé
Desde a quarta-feira (7/4), não são os diversos pacotes financeiros para salvar a moeda europeia nem mesmo as opiniões antagônicas sobre o pacto fiscal concebido pelo governo alemão que regem o tema da mídia nacional e internacional, mas sim o poema de Grass publicado no jornal mais respeitado do país, o Süddeutsche Zeitung. Intitulado “O que precisa ser dito”, acusa Israel de estar preparando uma guerra nuclear preventiva contra o Irã, o que estaria “ameaçando a frágil paz mundial”.
Desde então, políticos alemães e israelenses trocam farpas pela mídia. O escritor sumiu do mapa durante alguns dias e quando se pronunciou – em entrevista à rede pública ARD – disse sentir-se rotulado e atacou a mídia, acusando-a de fazer “uma cobertura tendenciosa”, além de garantir não retirar nada do escrito.
Isso foi o suficiente para esquentar ainda mais o debate. Políticos mais e menos sérios usam o episódio para aparecer na imprensa. Alguns condenam, outros relativizam e ainda outros dizem que não se deve dar muita importância por se tratar de “um velho escritor à procura de atenção”.
Fato é que o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura fez uso oportuno do instrumento de seu trabalho, um poema, para se posicionar politicamente – e isso da maneira mais equivocada e mais leviana possível. Israel é impacto garantido na mídia em todas as suas formas.
Pisando em ovos
Não é novidade para ninguém que o tema Israel, seja no contexto da política de ocupação na Palestina ou em qualquer outro, é um ponto nevrálgico, altamente sensível. A imprensa alemã é muito cuidadosa nas críticas a Israel. Isso sem falar nos políticos atualmente no governo, que volta e meia têm que fazer uma visita ao país, mesmo não havendo nada de urgente em pauta. Desde a quarta-feira (4/4), o principal noticiário do país, o Tagesschau, tem o tema entre os seus assuntos principais. Alguns questionam se Grass não teria resquícios antissemitas, outros pleiteiam a retirada do título de Prêmio Nobel de Literatura.
O ápice dessa dramaturgia voluntária foi alcançado no domingo (8/4), quando o governo de Israel declarou Günter Grass persona non grata, proibindo-o de visitar o país. O ministro das Relações Exteriores Guido Westerwelle, em sua coluna no tabloide sensacionalista Bild, escreveu: “Colocar o Irã e Israel no mesmo patamar não é nada espirituoso, e sim, absurdo”.
Para completar o tiro no pé, a imprensa iraniana elogiou Günter Grass. Logo o Irã, que é considerado na Alemanha como ameaça número 1 quanto se pensa num conflito nuclear. Claus Kleber, o âncora do Heute Journal, da TV pública ZDF e jornalista respeitado, há pouco dias foi a Teerã entrevistar o homem mais temido do nosso tempo e recebeu críticas ferrenhas de seus colegas por “ter dado uma plataforma de ouro para a divulgação de calúnias históricas, como a inexistência do Holocausto” – que, segundo Ahmadinejad, é produto da mídia do Ocidente.
A diretoria da TV acabou decidindo que a entrevista seria exibida depois da meia-noite. A revista política Cicero publicou uma crítica à entrevista com uma audaciosa manchete: “A autodesmontagem de uma estrela do noticiário”, referindo-se a Kleber.
Vaidade cega
A imprensa alemã é conhecida por suas matérias sem qualquer pincelada emocional. Sempre baseada nos fatos. O poema de Günter Grass mostra o outro lado de uma imprensa especialmente cuidadosa, que alega ter com Israel “uma responsabilidade histórica especial”. O tabu do tom crítico da mídia com Israel ainda persiste na Alemanha. O grau de persistência depende da credibilidade do veículo. Criticar Israel na imprensa alemã é pisar em ovos.
Uma normalidade gradual seria com certeza bem mais saudável. Por outro lado, o poema de Günter Grass faz renascer ressentimentos, medos, velhas e adormecidas picuinhas políticas, instiga o oportunismo de dirigentes de partidos na mídia e vem num momento em que pesquisa encomendada pelo governo alemão, e divulgada em janeiro deste ano, afirma: “A postura antissemita está amplamente arraigada na sociedade. Ela não é constatada ‘somente’ entre extremistas, e sim, chega até o meio da sociedade”.
Günter Grass já alcançou tudo o que um escritor e dramaturgo pode conquistar. Por que, então, não se banhar na reputação e admiração conquistadas? Movido por uma vaidade cega e mal resolvida, o escritor não considerou o caráter multiplicador que esse debate poderá ter, principalmente nas novas gerações que, segundo a pesquisa realizada pelo governo, já entra na vida adulta com esse percentual de antissemitismo cimentado em suas personalidades.
O debate lançado por Günter Grass fez retroceder em anos os esforços para um relacionamento mais bem resolvido entre a Alemanha e Israel, e entre a Alemanha e a opinião pública internacional.
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[Fátima Lacerda é formada em Letras no Rio de Janeiro e gestão cultural em Berlim, onde está radicada desde 1988]