Recentemente, a Secretaria de Comércio Interior da Argentina introduziu uma medida que limita a importação de livros no país. A restrição, obviamente, causou polêmica no universo cultural. Enquanto leitores se queixaram de entraves à ciência e cultura, editores protestavam que a nova regra não veio acompanhada de incentivos ao crescimento do mercado argentino de livros. Se deixarmos de lado por um instante as questões políticas e econômicas próprias dessa decisão, encontramos muitas semelhanças com um episódio ocorrido no Brasil da década de 1940.
Como foi sempre de costume em nossa curta história editorial, naqueles dias os editores brasileiros, recém-organizados, requeriam ao governo subsídios para o desenvolvimento da área. Problemas tradicionais do mercado editorial nacional, como o alto custo do papel e a dificuldade de importação de maquinário, limitavam a produção e encareciam os livros brasileiros. A gota d`água foi quando, em meados de 1944, a editora The Pocket Books Inc. anunciou sua pretensão de vender no Brasil livros de bolso em português impressos nos Estados Unidos. A notícia causou uma comoção sem precedentes no meio editorial. Editores, livreiros e gráficos se engajaram numa forte campanha contra a distribuição dos livrinhos americanos. Jornais e revistas destinaram amplo espaço aos artigos inflamados que debatiam o caso.
Reunidos em torno da Associação Comercial de São Paulo e do Sindicato Nacional das Empresas de Livros e Publicações (SNEL), no Rio de Janeiro, editores e livreiros discutiam a concorrência ameaçadora da firma americana que, para Décio de Abreu, da Record, poderia representar a morte da indústria do livro nacional. Dali surgiu até mesmo uma carta aberta ao presidente Getúlio Vargas pedindo providências contra as intenções “contrárias ao espírito amistoso que une os países americanos”. Nela também esclareciam que não lutavam contra a cultura norte-americana, mas contra a impossibilidade de competir com os livros estrangeiros dentro do cenário econômico brasileiro.
“Coca-cola literária”
Apesar de toda a argumentação dos editores sobre os danos que poderiam ser causados ao mercado de livros brasileiros, a questão não sensibilizou os colunistas da época. Considerando a demanda dos editores o pior dos protecionismos, o jornal Folha da Manhã não via perigo na iniciativa. Pelo contrário, achava que uma tarifa lançada contra o livro impresso no estrangeiro seria uma tarifa contra o progresso intelectual do povo brasileiro. No mesmo jornal, o cronista Rubens do Amaral classificou as alegações dos editores como um protecionismo que visava a conservar o país num crepúsculo medieval para que prosperassem os industriais do livro.
Do Diário Carioca, Maurício de Medeiros seguia o mesmo caminho. Considerava lamentável a atitude de protesto antecipado dos editores. Para ele, se o ramo sofria com a falta de estrutura, a editora norte-americana teria que investir muito em propaganda e novos meios de difusão das obras. Se assim fizesse, então estaria prestando um grande serviço aos editores nacionais. Para o jornalista Mario Cordeiro, se dali surgissem medidas em favor do bolso dos leitores do país, os americanos iriam provar que o seu livro de estreia trazia uma técnica revolucionária na arte de fazer amigos – em referência ao livro Como fazer amigos e influenciar as pessoas, de Dale Carnegie.
O que preocupava os críticos eram as consequências culturais da chegada dos pockets. Na primeira leva não havia um título sequer que estivesse na lista de obras consagradas pela crítica literária. Obras que o colunista Araújo Nabuco chamou de “coca-cola literária”. Eram gêneros menosprezados pela elite cultural, como autoajuda e novelas policiais. N’O Estado de S. Paulo, Mário Neme contestava que, ao invés de renomadas obras, como as de John Steinbeck ou Sinclair Lewis, o que se receberia seriam livros que tanto mais úteis seriam para nossa formação cultural quanto menos estivessem ao alcance da bolsa do nosso povo. Igualmente descontente com os títulos anunciados pela Pocket Books, Araújo Nabuco concluía que chegava a ser comprometedor para os próprios americanos divulgar no exterior o que eles têm de pior. No meio disso tudo, estava a solitária sensatez de Rubens do Amaral, para quem se o que se temia era a infiltração norte-americana, então deveriam começar proibindo as traduções, que são o grande negócio dos editores.
Argumentos antigos
Grandes reviravoltas econômicas, políticas ou sociais são momentos privilegiados para se observar os usos que se faz da cultura. Acuados pelos tentáculos americanos que ainda se aproximavam do país, os editores brasileiros pediam socorro às autoridades e recebiam o repúdio dos intelectuais. Críticos que há muito ansiavam por abundância cultural – desde que fosse uma “cultura certa”. Já no caso da Argentina atual, é o próprio governo que busca frear a entrada de livros estrangeiros frente às críticas de editores e intelectuais, que consideram a medida um entrave à cultura.
Por aqui os editores tentavam preservar seu pequeno negócio contra a investida norte-americana decretando o possível fim do livro nacional. Em descrédito com a opinião pública, acabaram acusados de impedir o desenvolvimento cultural do país. Nossos vizinhos, dependentes do mercado internacional, usam a cultura como argumento para manter as fronteiras abertas ao livro estrangeiro. Argumentos antigos em plena época de nuvens internéticas.
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[Gabriel Labanca é professor de Comunicação da Universidade Estácio de Sá e doutorando em História Social na UFRJ]