No dia 21 de novembro de 2005, os funcionários do Libération votaram pela greve em protesto contra um plano de 52 demissões imposto pelo principal acionista do jornal, Edouard de Rothschild. À noite, um delegado sindical do jornal, também jornalista, manifestava sua preocupação em entrevista à France Inter: ‘De repente, descobrimos ao vivo aquilo que contamos em nossas reportagens sobre a Hewlett Packard. Ali, compreendemos. Sabemos que há um acionista que quer cortar na carne, eliminar empregos, simplesmente porque não quer perder dinheiro.’
Na primavera de 2006, quando Rothschild demitiu Serge July, fundador e diretor do jornal, uma representante da Société civile des personnels (Sociedade Civil dos Empregados) espantou-se com a ingenuidade de seus companheiros. ‘Eles acabam de descobrir que o Libé também é uma empresa, que existe um patrão, um acionista, um modo de funcionamento, o qual não se pode isolar da sociedade civil’ [citada por Les Inrockuptibles, Paris, 20 de junho de 2006].
O quê? O conflito entre capital e trabalho também existe nas empresas jornalísticas? Essa ‘descoberta’ não deixou pasmos apenas os empregados do Libération. No ano de 2006, seus colegas do France Soir, normalmente pouco compreensivos para com grevistas, pararam o trabalho, eles próprios, durante 5 semanas, em protesto contra mudanças no jornal conjugadas com a demissão de metade dos funcionários; a revista Paris-Match passou por sua primeira greve desde 1968 após a demissão do diretor do semanário, culpado, na opinião do proprietário, Arnaud Lagardère, de ter ferido o amor-próprio de Nicolas Sarkozy; no Journal du Dimanche, os jornalistas demonstram sua preocupação para com a ‘independência editorial’, enquanto os sindicatos das publicações do grupo Lagardère Active Média receiam as conseqüências sociais da ‘guinada digital’ coordenada pelo setor industrial. O qual considera desnecessário manter entre os jornalistas a ilusão de um estatuto específico: ‘O que significa a independência, em matéria de imprensa? – diz Arnaud Lagardère, irritado. ‘Isso é conversa para boi dormir. Antes de se preocuparem com sua independência, os jornalistas deveriam procurar saber se o jornal em que trabalham é durável’ [citado por Thierry Gadault em Lagardère, l’insolent, Paris, ed. Maren Sell 2006, p. 204].
‘Custos intoleráveis’
A equipe do Parisien-Aujourd’hui en France, por sua vez, fez uma greve-tartaruga em dezembro, por 24 horas: o grupo Amaury exigia dos jornalistas ‘de 15 a 30% de maior produtividade para aumentar a competitividade’. No Nouvel Observateur, a maioria da redação se opõe à escolha de uma nova direção editorial efetuada por Claude Perdriel, dono do semanário. No Le Monde, murmuram-se frases de ‘tomar cuidado’ ou de ‘moções de desconfiança’ em relação à direção da empresa por parte da Société des rédacteurs (SRM) e de representantes dos funcionários, seja para protestar contra a indenização faraônica paga a um diretor que se aposentou, ou para demonstrar ‘a total perda de confiança’ nos dirigentes do grupo.
Pela primeira vez na história desse vespertino, uma decisão estratégica – a construção de um pólo de imprensa regional no sul da França em parceria com o grupo Lagardère – foi recebida com hostilidade por parte dos jornalistas-acionistas convocados a se pronunciarem sobre o projeto, em setembro de 2006.
Inicia-se agora uma distensão entre as redações e os dirigentes das empresas, na medida em que estes finalizam a normalização comercial da informação, um ‘serviço de interesse geral’ reivindicado pelos resistentes.
Em 2005, quando fazia o balanço do ano anterior, o Sindicato Nacional dos Jornalistas, vinculado à CGT (SNJ-CGT), destacou uma elevação conjunta da pressão econômica e da temperatura social. ‘Na França, 2005 foi o ano mais negro para a mídia dos últimos 60 anos, ou seja, desde a lei de imprensa, adotada em 1944’ [Comunicado de 10 de janeiro de 2006]. Ainda em 2004, greves e protestos de jornalistas pipocaram num espectro que ia do Figaro (comprado por Dassault em 2003), à editora Publihebdos (principal grupo de imprensa semanal regional da França e pertencente ao grupo Ouest-France), passando pelo audiovisual público, pelo Républicain Lorrain, pela Agência France-Presse, pelo jornal Sud-Ouest, pelo grupo Emap… Com raras exceções, no entanto, os proprietários e os diretores pulam quase sempre por cima das frágeis barricadas erigidas em seu caminho.
Esse recrudescimento de conflitos nas empresas de comunicação contrasta com os anos do ‘milagre internet’, cujas receitas publicitárias superabundantes incharam a bolha com um otimismo beato. A brutalidade que resultou das intervenções feitas no setor da imprensa escrita a partir de então acelerou o descontentamento. Hipnotizados pela audiência conquistada pelos veículos ‘gratuitos’ – via internet ou telefone celular – os empresários reorganizaram seus grupos em estruturas ‘plurimídia’, mais fáceis para captar as receitas publicitárias.
‘Atualmente’, diz Jean-Marie Colombani, diretor-presidente do jornal Le Monde, ‘já não se trata de comercializar junto a anunciantes da difusão paga e, sim, de vender audiências’ [Les Échos, 27 de julho de 2006]: aquela das publicações controladas pelo grupo, a de seu site na internet, a de produtos derivados, a do jornal ‘gratuito’ lançado em parceria com Vincent Bolloré e, secundariamente, a do jornal.
Esse objetivo, compartilhado pela maioria dos empresários de comunicação, deixa entrever uma nova degradação da mídia voltada para a informação de fundo (investigação, reportagem): atualmente, os investimentos são orientados para as atividades digitais, em detrimento dos setores tradicionais. ‘A imprensa diária vai durar por uns dez anos. Os custos de produção se tornarão intoleráveis’, preveniu Lagardère [Le Journal du dimanche, 17 de setembro de 2006]. É fácil imaginar a angústia desse pequeno empresário: o benefício que usufruiu com seu grupo de mídia foi multiplicado por doze entre 2002 e 2005 [Thierry Gadault, op. cit., p. 222]…
Empregos precários
Como em qualquer outra atividade, também aqui o desejo de maior lucratividade implica maior produtividade e concentração de capital. Exigências que logo repercutem nas empresas de comunicação por meio da eliminação de postos de trabalho e de um aumento de flexibilidade e polivalência. Pelo mesmo salário, um número cada vez maior de jornalistas se vê obrigado a acrescentar à sua carga horária de trabalho o uso de softwares da secretaria de redação, ou de diagramação, textos online, participação de fóruns de debates e até a operação de uma câmera para alimentar a rubrica ‘vídeo’ do site na internet [ler, de Eric Klinenberg, ‘Jornalistas polivalentes da imprensa norte-americana’, Le Monde diplomatique, fevereiro de 1999].
Nessas condições, não é recomendável perder tempo. ‘É preferível ficar na redação, ler um relatório interessante, pesquisar um assunto ou investigar algum tema na internet do que sair correndo para algum lugar de microfone na mão’, ensinava Jean-Paul Cluzel, diretor-presidente da Radio France, em junho de 2005. ‘A redução de custos também passa pela terceirização de uma parte da redação’, diz Eric Marquis, do Sindicato dos Jornalistas. ‘Muitos jornais subcontratam páginas junto a empresas que não têm o estatuto de agências de notícias. Um pouco como as emissoras de televisão, que recorrem às produtoras independentes.’
Por fim, a volta de uma certa combatividade às empresas de comunicação também se deve à rarefação do emprego. François Malye, presidente do Fórum das Associações de Jornalistas, destaca que ‘caso não haja acordo, os jornalistas não podem deixar o jornal para procurar emprego em outro – porque não há o outro’ [entrevista ao site NouvelObs.com, 8/11/2006].
Na realidade, o furacão não pega somente o exército de reserva dos jornalistas ‘precários’, que normalmente são as vítimas do mercado: atinge os assalariados estáveis, no centro das redações. [37.009 jornalistas tinham registro profissional em 1º de janeiro de 2007. Entre eles, contam-se quase 19% de precários (frilas), sem falar nos inúmeros jornalistas que trabalham sem registro. Ler, de Gilles Balbastre, ‘Misère des journalistes précaires’, e, de Lionel Okas, ‘Les journalistes aussi’, Le Monde diplomatique, abril de 1999 e abril de 2004, respectivamente.] ‘Entre os 75 jornalistas demitidos na primavera pelo France-Soir‘, revela Michel Diard, secretário do SNJ-CGT, ‘apenas um havia conseguido um contrato por tempo indeterminado no inverno de 2006.’ O sindicato avalia que mais de mil postos de trabalho de jornalistas foram eliminados em 2006.
‘Privilégios ultrapassados’
Em 1983, a guinada liberal da esquerda que então ocupava o poder na França dizimou os trabalhadores da indústria; uma década depois, o ‘franco forte’ e a recessão do pós-guerra do Golfo também devastavam operários e assalariados de classe média; atualmente, a onda da ‘precariedade’ alcança algumas profissões intelectuais de ensino superior [cf. Mona Chollet, ‘Le paradis sur terre des intellos précaires’, Le Monde diplomatique, maio de 2006].
A própria fina flor das redações parisienses, que se imaginava protegida por planos de carreira e outros ‘pactos de acionistas’, sofreu as conseqüências das políticas que, em geral, sempre referendou. Foi o caso dos colunistas do semanário L´Express, demitidos no outono passado por força dos objetivos de um novo proprietário, decidido a duplicar em três anos a margem operacional do grupo Express-Expansion – escandalosamente atolada em 5%.
O fenômeno ultrapassa as fronteiras da França. Uma pesquisa feita em 2006 pela Federação Internacional dos Jornalistas junto a sindicatos de 38 países conclui que ‘o emprego na mídia tornou-se precário, sem segurança e intenso. […] No mundo inteiro há uma tendência à privatização dos meios de comunicação públicos; jornalistas experientes são substituídos por jovens recém-diplomados, contratados quase sempre por tempo determinado’. Para a maioria das entidades que foram ouvidas, ‘a insegurança no emprego produz um jornalismo tímido’, o que leva ao ‘declínio do jornalismo crítico e investigativo’, enquanto ‘a concentração dos meios de comunicação e as pressões por parte do governo induzem a uma informação insípida’ [ler, de Emma Walters, Christopher Warren e Mike Dobbie, The Changing Nature of Work. A global survey and case study of atypical work in the media industry, International Federation of Journalists – Organização Internacional do Trabalho, abril de 2006].
Às vezes, também induzem a rebeliões. Na Grã-Bretanha, os funcionários da BBC vêm combatendo há três anos um plano de ‘modernização’ que implica a eliminação de milhares de postos de trabalho. Na Alemanha (2004) e depois em Portugal (2005), a renegociação das convenções coletivas dos jornalistas levou a uma multiplicação de paralisações: as federações patronais exigiam reduções salariais e mais flexibilidade. Pelos mesmos motivos, em dezembro último, os redatores dos jornais italianos ofereceram a seus leitores um presente de Natal insólito: três dias de greve geral.
‘Os jornalistas’, diz um despacho da agência Reuters, ‘revoltam-se especialmente com o recurso, cada vez mais freqüente, do trabalho temporário e mal-remunerado, do qual seus sindicatos avaliam que produz um jornalismo de segunda classe e `sem utilidade numa democracia´. Os donos dos jornais acusam os jornalistas de resistirem a uma flexibilidade maior, necessária ao mercado de trabalho, e de tentarem manter privilégios ultrapassados’ [Reuters, 20 de dezembro de 2006].
Um estribilho bem conhecido, embora seja normalmente utilizado contra os trabalhadores… por jornalistas.
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Sociólogo, autor de Libération, de Sartre à Rothschild, Ed. Raisons d´Agir, Paris, 2005