O Estado de S.Paulo informou que o desembargador presidente do TRF3 propõe a criação de um novo instituto jurídico, que denominou habeas mídia (ver aqui). Segundo o autor da proposta, o habeas midia “…seria um instrumento para a proteção individual, coletiva ou difusa, das pessoas físicas e jurídicas, que sofrerem ameaça ou lesão ao seu patrimônio jurídico indisponível, por intermédio da mídia”.
Como advogado e estudioso amador do fenômeno da comunicação, não posso apoiar a proposta do desembargador Newton De Lucca. Apesar do nome pomposo e dos objetivos relevantes que o autor atribuiu à sua proposta, a liberdade de imprensa deve ser preservada e a inexistência de censura prévia também. O habeas mídia esbarra nos princípios constitucionais que preservam a natureza inclusiva e pluralista da sociedade brasileira.
O patrimônio das pessoas físicas e jurídicas ameaçado de lesão ou eventualmente lesado pela mídia já é garantido pela Constituição, pelo Código Civil e pelo Código Penal. Os veículos de comunicação respondem civilmente pelos danos morais que provocam. Jornalistas podem ser processados por injúria, difamação e calúnia. O recolhimento de material pseudojornalístico descaradamente ofensivo, abusivo ou mentiroso pode ser deferido pelo Judiciário em sede de tutela antecipada ou de medida cautelar, com ou sem a oitiva do réu.
Arbítrio judicial
Impedir os profissionais de investigar um furo jornalístico ou de divulgá-lo é um exagero injustificável. A liberdade de imprensa existe justamente para garantir que informações relevantes eventualmente desconhecidas do público sejam levadas ao conhecimento deste. O interesse público tutelado pela liberdade de imprensa deve sempre se sobrepor aos interesses privados daquele que gostaria de preservar segredos que interessam à coletividade. É justamente por isto que os veículos de comunicação e os jornalistas respondem pelos seus atos depois de realizarem seu trabalho, e não antes de concluí-lo e divulgá-lo.
Toda decisão judicial comporta alguma subjetividade. Mas nos dias de hoje a ciência do Direito considera essencial que este grau de subjetividade seja o menor possível. É por isto que a boa técnica legislativa procura impor critérios objetivos para a atividade de julgar. O juiz julga conforme seu livre convencimento racional, mas tem que se ater às provas que foram produzidas no processo pelas partes. Uma prova não pode ignorada a não ser nos casos prescritos em Lei. O conteúdo de cada prova produzida está sujeito a interpretação durante o julgamento, mas a faculdade de interpretar a prova não é elástica pois existem regras que estabelecem a obrigação da produção de determinados tipos de provas para determinados tipos de fatos, bem como uma hierarquia entre as provas (documentos públicos geralmente tem mais valor do que documentos privados, documentos privados bilaterais tem mais valor do que documentos privados unilaterais, documentos escritos tem mais valor do que depoimentos prestados por testemunhas sobre os fatos enunciados nos documentos etc…).
Por que os teóricos do Direito optaram conscientemente pela redução da subjetividade no ato de julgar? Porque a atividade judicial não pode e não deve ser produto do arbítrio. O cidadão encarregado de resolver disputas judiciais é um técnico que realiza uma atividade pública, a apreciação que faz da lide lhe submetida deve ser imparcial e ele não pode e não deve agir segundo sua vontade e subjetividade. O arbítrio judicial produziu os maiores, mais dolorosos, vergonhosos e horrendos erros judiciários durante a Idade Média. O caso do processo conduzido pelo bispo Pierre Cauchon contra Joana D'Arc é famosíssimo. Todo o procedimento judicial conduzido por Cauchon foi anulado posteriormente, mas quando isto ocorreu Joana D'Arc já havia sido executada. A anulação da infame condenação de La Pucelle entrou para a História do Direito Ocidental com a mesma importância que a própria Joana D'Arc entrou para a História da França. Mas o desembargador De Lucca parece ter esquecido esse detalhe.
Matar a víbora
Além de reintroduzir no universo jurídico a censura prévia proibida pela Constituição em vigor, de proporcionar uma indevida e absurda limitação da liberdade de imprensa, o projeto de De Lucca implicaria na reintrodução do arbítrio na atividade de julgar. Qual seria o critério para a concessão do habeas midia? Por mais que tentem definir condições objetivas para o deferimento desta nova medida judicial, a concessão ou não do cala boca judicial ficaria sempre ao sabor das preferências políticas, sociais, culturais e ideológicas do juiz. Implantada a novidade (com mudança da Constituição, pois sem isto a medida seria inconstitucional), cada juiz brasileiro seria transformado numa espécie de censor incidenter tantum dos pedidos de habeas midia submetidos à sua apreciação.
Uma pequena distorção jurídica como esta, por mais bem intencionada que seja, produziria distorções jurídicas ainda mais relevantes. Em pouco tempo, autoridades com foro privilegiado exigiriam que seus habeas midia fossem julgados nos seus foros privilegiados. Os cidadãos mais bem aquinhoados contratariam advogados especializados em habeas midia, enquanto o restante da população ficaria à mercê da liberdade de imprensa. Aferrados às manhas do cotidiano forense, advogados começariam a mapear os juízes segundo suas preferências pessoais, políticas e ideológicas e começariam a usar macetes para que determinados pedidos de habeas midia fossem distribuídos ou apreciados por determinados juízes simpatizantes. Em pouto tempo, alguns cidadãos “mais iguais” teriam seus segredos preservados, enquanto os cidadãos “menos iguais” não teriam direito a segredos.
Lembrete final sobre o habeas midia: é importante matar esta víbora antes dela nascer. Depois que ela infectar todo sistema judiciário e jornalístico brasileiro, o mal será geral, incontornável e incontrolável.
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[Fábio de Oliveira Ribeiro é advogado, Osasco, SP]