As palavras são veículo do pensamento humano e também fonte de profundo desentendimento entre humanos. É uma dessas contradições paralisantes. Mas não se inventou ainda nada mais poderoso do que a força da palavra – seja escrita, falada, imagética. E é assim desde os primeiros entalhes rupestres de milhões de anos passados, em obscuras cavernas de nosso passado comum, até sua compactação em milhares de terabytes em minúsculas partículas de areia (chips) do Vale do Silício, na Califórnia.
Das gravuras rupestres às escandalosas alegorias pintadas (e ainda vivíssimas) nas casas de Pompéia, destruída pela erupção do Vesúvio no ano 79, e até os dias que correm, neste abril de 2012, quando mais que 800 milhões de seres humanos estão conectados na rede social conhecida como Facebook, a palavra continua sendo o signo, o símbolo, o meio condutor de pensamentos, sentimentos, aspirações e mais uma miríade de humanas emoções.
Existem palavras e palavras. Algumas conseguem cumprir sua missão e transmitem coisas assimiláveis pelo intelecto, outras expressam não mais que confusão mental, seja de quem as profere, seja dos que se deixam contaminar pelo espírito de uma época como esta
É o caso dos políticos, em geral, e dos jornalistas, em particular. No caso dos políticos, tem sido prática cada vez mais recorrente ouvirmos declarações como:
** “Estou absolutamente convencido” – que significa na verdade dizer que “não estou nem um pouco convencido, ainda não tenho juízo de valor sobre o assunto”;
** “Sou inocente e nada tenho a ver com essa história, tenho um nome a zelar” – a significar que “até o momento consigo passar a mensagem de que sou inocente e saio ileso do imbróglio de que me acusam”, e também “um nome a zelar apenas e somente diante da opinião pública”;
** “Ainda não li os jornais de hoje, não vi o noticiário, depois que tomar conhecimento direi algo” – significa que “sei de tudo desde o momento mesmo em que o assunto começou a repercutir na imprensa, li o clipping antes de sair de casa, mas preciso de tempo para saber como devo reagir publicamente”;
** “Pelo nome e pela vida de meus filhos afirmo ter sido iludido em minha boa fé” – significa o mesmo que “agora que a situação vai de mal a pior resta apenas apelar para os melhores sentimentos de amor à família aos filhos como forma de conexão
** “Logo mais anunciarei minha renúncia ao cargo de forma irrevogável” – significa o mesmo que “produzirei um fato com potencial midiático instantâneo e ao fim e ao cabo terminarei por não renunciar ao cargo”;
Como vestal
Agora o caso dos jornalistas – não a maioria, que não costuma contar com formidável aparato comunicacional, e sim a minoria detentora da propriedade dos jornais impressos de maior tiragem diária, das rádios mais aquinhoadas com patrocínio tanto público quanto privado, e das emissoras de tevê de maior audiência; uma minoria que, ciente do poder ostensivo e intimidatório que detém, faz as vezes do Criador da Realidade, transforma versões em fatos irrefutáveis e em meros rumores o que desde sempre era a mais escancarada das verdades factuais.
É essa minoria que consegue o milagre de transmutar mau-caratismo em quintessência de beatitude, transformar empresário de negócios escusos, aliciador de agentes públicos para redes de corrupção e chantagista por opção de conduta em fonte jornalística acima de qualquer suspeita, brindado com burocráticas declarações off the record, saudado como “ouvido de uma autoridade que priva da intimidade do primeiro escalão do governo”, reverenciado como “qualificado assessor”, “felpuda raposa política”, “servidor público com irretocável biografia”.
E tudo funciona às claras, sem qualquer pudor de estar tramando contra a ordem natural das coisas: primeiros os fatos precisam acontecer para só então receber repercussão. Qual regente de personagens e instrumentos, algumas personalidades se sabem abrigadas pelo imenso aparato de proteção que tão somente a propriedade de um jornal ou de uma revista semana tradicional, capitalizados e com enorme circulação nacional, pode conferir ao seu proprietário e aos seus muitos prepostos.
É deste pântano de interesses mesquinhos, onde pontifica a musgosa ética do “faça o que eu digo e não o que eu faço”, que parecemos viver
Mas, enquanto isso, sempre dentro de uma ética lasciva, grampos telefônicos devidamente autorizados pelo Poder Judiciário do país, e que somam mais de 3 mil horas de gravações, mesmo sendo vazados a torto e
Capa de revista? Nem pensar. É mais fácil ressurgir das cinzas um escândalo de estimação, daqueles das antigas, sem qualquer fato novo, salvo o de servir como pressão para que a instância máxima do Poder Judiciário exare sua sentença sobre o assunto. E, de quebra, manter a aparência de vestal. Embora, como se diz em algumas regiões do Brasil,
Mágica descoberta
Nas últimas semanas chegamos à conclusão de que vivemos e ainda assim não veremos tudo a que tínhamos direito de ver. Os grampos ilegais são excelentes para a imprensa desde que contenham material demolidor contra a reputação e o trato bem pouco republicano pilhado pelo governo que não aprovamos e não admiramos. Os grampos autorizados pela Justiça são péssimos quando flagram “grampeadores profissionais” em conversas típicas do submundo do poder e das ambições humanas e reduzem a pó de mico figuras que foram construídas
E, então, um dia os mágicos-jornalistas, aqueles que tinham conhecimento dos erros de todos os demais, menos dos seus próprios, descobrem que nem sua cartola era real e muito menos seus truques conseguiriam cativar a atenção de mais ninguém. A mágica de escrever reportagem com riqueza de detalhes, segundo a segundo, palavra a palavra, frase a frase, recriando palavreado recheado de intimidade como a despistar pensamentos e intenções reais, ficou a descoberto.
E nem a liberdade de imprensa será uma vez mais invocada em vão: esta liberdade é por demais sagrada para servir de mero abrigo a sacripantas.
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[Washington Araújo é mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter]