Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A infância que a mídia mostra

A imprensa traz, nesta semana de Carnaval, um retrato da infância brasileira. Não é um retrato intencional, em matéria única. O assunto disperso permite, quando juntadas as peças, montar um quadro bem triste da infância brasileira.

De um lado as crianças pobres, que passam pela escola e saem antes de concluir o primeiro grau e podem acabar na marginalidade. De outro os filhos de classe média, preparados desde os primeiros anos para terminar a faculdade, fazer mestrado e doutorado e enfrentar a concorrência no futuro. Criança que preocupam porque não têm tempo para brincar.

O lado pobre foi mostrado por meio da história dos menores de idade envolvidos no brutal assassinato do menino de 6 anos no Rio de Janeiro, na matéria ‘De amigos a parceiros, na morte de João’, no Estadão. A diretora da escola onde o menino estudou conta que um deles…

‘…era um garoto difícil. Desrespeitava os colegas e professores. Era comum ele chegar, dormir a aula inteira e no intervalo provocar os outros alunos. Ele faltava tanto que perdeu o fio da meada. Deixou a escola depois de repetir a 6ª série. Numa das transgressões mais graves, pichou a parede da escola com a sigla de uma organização criminosa’. (O Estado de S.Paulo, 16/02/2007)

O lado mais privilegiado é mostrado pela revista Veja (nº 1996, de 21/2/2007), na matéria ‘Criança feliz, feliz a brincar’ onde se lê o depoimento dos pais sobre a preparação dos filhos. Uma das mães conta que…

‘…Giovana tem uma agenda muito atribulada. De segunda a quinta, ela não chega em casa antes das 7 da noite. Duas vezes por semana, chega por volta das 9. Depois da escola, ela emenda aulas de ginástica rítmica, dança e começará em breve um curso de inglês. Ela já fez ginástica olímpica, robótica e agora quer entrar para as aulas de teatro e coral. Como penso muito no futuro de minha filha, acho que essas atividades extracurriculares serão muito úteis para a carreira profissional dela.’

Segundo Veja

‘…crianças que brincam mais se tornam jovens e adultos melhores. Os jogos e divertimentos (civilizados, é claro) estimulam a inteligência, ensinam valores, colocam a criança em contato com suas habilidades e dificuldades, despertam a imaginação e a criatividade e aliviam tensões’.

Enquanto os filhos de Veja são preparados para um futuro glorioso, os filhos do Estadão sonham, no máximo, com uma carreira da polícia militar. Entre os dois, um abismo econômico e social que a imprensa faz questão de desconhecer.

Mais sangue

Em vez de tentar explicar aos leitores o que realmente acontece com os jovens que são levados ao crime, a imprensa prefere fazer sensacionalismo, como o box da matéria do Estadão que mostra o horror das pessoas que presenciaram o crime:

‘É uma imagem chocante que vai ficar para sempre na minha mente. Não era possível identificar o que era… As pessoas gritavam. Cheguei a pensar que pudesse ser um boneco’.

Como disse a crítica de TV Leila Reis em sua coluna de domingo (18/2):

‘A crueldade humana não tem limites. O assassinato do menino João Hélio Fernandes, arrastado até a morte por um carro no Rio de Janeiro, é o emblema dessa premissa. O crime cometido por jovens delinqüentes contra aquela criança foi gratuito e brutal, e por isso mesmo chocante. Era natural que a mídia desse ampla cobertura ao fato e seus desdobramentos. O que não é natural é a exploração sensacionalista em que a TV mergulhou. Os telejornais trabalharam para prolongar o máximo possível o estado de comoção nacional sem o menor constrangimento’. (O Estado de S.Paulo, 18/2/ 2007).

As palavras de Leila Reis bem que poderiam ser aplicadas à mídia impressa que, cada vez mais, parece acreditar que quanto mais sangue, mais crueldades, mais exemplares vendidos.

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Ligia Martins de Almeida