O bárbaro assassinato do garotinho carioca João Hélio está servindo para expor, outra vez, a face mais brutal da sociedade brasileira: o gosto pelo linchamento, o prazer da lei do ‘olho por olho, dente por dente’, a sanha da tortura.
Nesses dias de ‘comoção nacional’, espalha-se de novo o sentimento casuístico de que o endurecimento das penas salvará o país de novas ‘comoções nacionais’. Quem sabe não está na hora de quebrar a pedra da cláusula pétrea constitucional que proíbe a pena de morte? A depender de alguns coleguinhas, talvez essa seja a solução. Como noticiou a Agência Estado na última terça-feira, 13/02, alguns profissionais da imprensa agrediram a socos e pontapés os suspeitos do crime, detidos na 30ª Delegacia de Polícia do Rio de Janeiro. Segundo a agência, um operador de câmera declarou: ‘Eu não acho que tem que bater não, tem que matar. Eu tenho uma filha de 6 anos.’
Suspiros e lágrimas
Tradicional surfista das ‘comoções nacionais’, o senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA) pretende aprovar um projeto de lei que reduz a maioridade penal. Pressionado pela chamada opinião pública, o novo presidente da Câmara dos Deputados, Arlindo Chinaglia (PT-SP), defende penalidades mais rigorosas para os delinqüentes ‘de menor’.
Profissionais da política, parecem naturais as reações de ACM e Chinaglia ao sobe-e-desce do humor do público. Acontece que essa gangorra não é definida por princípios mais, ou menos, elevados. Convenhamos: ‘comoção nacional’ é o que o Jornal Nacional, nos suspiros de William Bonner e nas lágrimas de Fátima Bernardes, define como ‘comoção nacional’. O caso João Hélio só se tornou uma ‘comoção nacional’ por causa de sua exploração mórbida pelo Jornal Nacional.
Sangue, fogo e enxofre
Por que será que não se tornaram ‘comoção nacional’ as recentes cenas de tortura praticadas por policiais paulistanos contra cidadãos que passavam na rua, nas proximidades da Estação da Luz? Filmadas por um cinegrafista amador, as cenas foram também veiculadas pelo Jornal Nacional. Não houve ‘comoção nacional’ porque o público, anestesiado, aceita a tortura, esse horror que é prática corrente nas delegacias de polícia.
Por que não se tornam ‘comoção nacional’ as evidências de tortura praticadas por policiais contra os detentos suspeitos do assassinato de João Hélio, conforme se percebe nas fotos da Agência Estado divulgadas na internet, ou na foto da Agência Globo, publicada nessa terça-feira, 13/02, na página 9 do Correio Braziliense (três suspeitos, algemados, sendo esganados por três policiais)? Não há ‘comoção’ porque a chamada opinião pública aceita a lei do talião, praticada todos os dias contra os suspeitos de sempre.
Cevada pelo Jornal Nacional, a opinião pública quer sangue, quer fogo e enxofre. Quer combater a barbárie com mais barbárie. Como o suicida do Canto XIII do Inferno de Dante, se não for detida, essa opinião pública alienada acabará transformando em patíbulo a própria casa, que é a nossa casa. Alguém tem que se rebelar contra esses baixos instintos que envenenam o país.
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Jornalista e vice-presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal