Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Não, não temos um Guardian

O tradicionalíssimo jornalismo da Inglaterra, um país que vive a contradição de ter os jornais mais respeitáveis do mundo e também os veículos mais abjetos – os tabloides dedicados a gossips e escândalos –, viveu, no ano passado, um debate fundamental para a legitimação social de sua imprensa. Quais os limites éticos da atuação do jornalista? Quais os limites da empresa jornalística? A sociedade inglesa mostrou-se madura, e não corporativista, quando, debatendo sua imprensa, percebeu que o que estava em jogo era o bem comum e a certeza de que nenhum profissional ou instituição pode estar acima da lei e da sociedade.

Ora, isso aconteceu numa democracia monarquista, com fortes pendores elitistas, e que, aos olhos do mundo, parecia aceitar sem constrangimentos práticas duvidosas de imprensa. O caso exemplar de maturidade da grande imprensa e da sociedade inglesas foram as investigações conduzidas pelos jornalistas do jornal The Guardian e, posteriormente, pelos da BBC, sobre o caso Murdoch e suas práticas criminosas por meio do jornal sensacionalista News of the World.

O caso obrigou não somente Rubert Murdoch a se explicar publicamente, como também levou seu filho, James Murdoch, presidente do Grupo News Corp., aos tribunais. As investigações da própria imprensa levaram também o jornal a ser fechado, James a deixar a presidência do grupo e a sociedade inglesa a discutir abertamente os seus métodos de imprensa. Depois de tudo, quem saiu ganhando foi a sociedade e a própria imprensa séria.

Busca pela transparência

Mas aqui no Brasil nem temos um The Guardian, onde jornalistas podem, em nome do bem social comum, investigar outros jornalistas, e nem podemos contar com a consciência de grandes empresários da comunicação, de que eles devem vir a público prestar contas à sociedade.

O Brasil é o país das caixas pretas. Demoramos décadas para tentar iniciar a investigação sobre os crimes da ditadura, processo que outros países que viveram o mesmo drama desencadearam bem antes; não conseguimos desvendar os mistérios acerca da atuação duvidosa de altos magistrados, algo inimaginável na maioria dos países desenvolvidos; e somos acusados de comprometer a liberdade de imprensa toda vez que os deslizes jornalísticos cometidos pelos grandes grupos são debatidos, alegação jamais usada nas maiores democracias do mundo.

O mais interessante é que duas destas caixas pretas, com ajuda da imprensa, estão em pleno processo de abertura. A Comissão da Verdade, ainda que prejudicada por zelos e temores do governo federal, vai trazer à luz um passado que deve ser descortinado e discutido por toda a sociedade. E Eliana Calmon, a corajosa corregedora do Conselho Nacional de Justiça, inspirou um debate irreversível sobre os males do Judiciário. Diante desse processo evolutivo que vive a sociedade brasileira, de busca pela transparência em todas as esferas sociais, é de se perguntar: e as práticas ilícitas na imprensa, ninguém poderá discuti-las?

Aprofundar o debate

Nem investigar a atuação do judiciário, fiscalizá-lo, coloca em risco a democracia e o direito, nem investigar os grupos de mídia ameaça a liberdade de imprensa. Até porque maus jornalistas ou más empresas de mídia não se confundem com toda a imprensa, assim como maus juízes não são propriamente os melhores representantes do Judiciário. O caso do suposto envolvimento de um jornalista da Veja – e parece que de outros órgãos também – com o esquema criminoso de Carlinhos Cachoeira, fato revelado pela Polícia Federal, é sintomático de nossas diferenças em relação ao Reino Unido. Como não temos um Guardian, nenhum veículo da grande imprensa aceitou discutir a questão: o silêncio foi comprometedor. A mesma imprensa que a tudo quer fiscalizar, não se fiscaliza, não se discute, não observa os próprios erros.

Num segundo momento, como a rede desempenhou este papel de observatório dos bons e dos maus atos de imprensa, surgiram vozes que tentaram justificar o suposto ilícito: alegavam que o trabalho jornalístico exigiria, em alguns setores, uma agenda com fontes mesmo suspeitas. Ora, mesmo um calouro de faculdade de Jornalismo sabe perfeitamente que o dever de preservar as fontes e a necessidade de contar, na agenda, com offsiders, não se confunde com a permissividade de se deixar bandidos, contraventores, operadores de tráfico de influência e chantagistas usarem o veículo para fins próprios.

O que está em discussão é que, além da fonte, todo um esquema criminoso pode ter sido preservado e, pasmem, o próprio esquema pode ter se utilizado do veículo para praticar chantagens e crimes de tráfico de influência. Modalizamos nossa afirmação (“suposto”, “pode ter sido”) porque é preciso que se leve adiante uma investigação séria, isenta e aprofundada para que este envolvimento seja esclarecido.

Mas é justamente esta investigação que vem sendo atacada por colunistas designados por veículos que, impossibilitados de manterem silêncio sobre o grave fato, desejam de forma autoritária impedir que a sociedade saiba o que realmente vem acontecendo. Já é gravíssimo o fato de os veículos de imprensa terem silenciado sobre possíveis ligações perigosas entre outros veículos e o crime organizado. Isto mostra que dificilmente poderemos contar com a grande imprensa nacional para fiscalizar a si própria. Mais grave ainda é a tentativa de calar aqueles que querem aprofundar o debate e pedem, como cidadãos, que o fato seja discutido abertamente.

É hora de acertar os ponteiros

A nossa rede é que vem fazendo o papel que, na Inglaterra, foi desempenhado dignamente por jornalistas que, antes de falarem corporativamente, pensaram no bem público. Blogs, Twitters, o jornal Brasil 247, veículos alternativos, é que estão assumindo a função que a sociedade, frustrada, pensava ver exercida também pela própria grande imprensa.

O problema se agrava quando vemos que esta defesa corporativa só se dá em relação a alguns grupos empresariais privilegiados. Mais precisamente Folha de S.Paulo, Estado de S.Paulo, Editora Abril e as Organizações Globo parecem contar com esta estranha imunidade midiática, tão absurda e antidemocrática quanto os institutos da prisão especial, do foro privilegiado e da imunidade parlamentar.

Democracia é o regime que garante a todos olhar pelo bem comum, independentemente dos interesses particulares. Que pelo menos os jornalistas companheiros, designados pelos veículos, não tentem impedir que outros setores da sociedade, como a Polícia Federal, o Ministério Público, o Congresso Nacional, e mesmo a opinião pública, representada mais fielmente hoje pela rede, possa discutir o que realmente pode ter acontecido.

Nossa sociedade, das tradições de engenho, do passado escravagista, sempre naturalizou uma estranha clivagem que põe de um lado aqueles que só podem atuar submetidos às leis e, de outro, aqueles que definem para si próprios os seus alcances legais. Um elitismo torpe, inconcebível para um país que quer se enquadrar entre as grandes democracias do mundo.

É hora de acertar os ponteiros.

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[Wedencley Alves é professor de Jornalismo na UFJF]