Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Cortina de fumaça

“Ele mudou de assunto.Parece piada.” Para o crítico Roberto Schwarz, a entrevista de Caetano Veloso publicada na “Ilustríssima” de 15/4 não entra no mérito dos argumentos de seu ensaio sobre “Verdade Tropical” (1997), volume de memórias do compositor. O texto, inédito, faz parte da coletânea recém-lançada Martinha versus Lucrécia [Companhia das Letras, 320 págs., R$ 44].

Caetano criticou Schwarz e Marilena Chaui:”Por que nunca têm nada a dizer sobre o que se passa na Coreia do Norte?”. Schwarz rebate: “O interesse pela Coreia do Norte é sobretudo cortina de fumaça para não falar de meu livro.”

Certa vez, num evento, perguntaram a Schwarz quando sairia o texto sobre Caetano. Ele disse: “É demorado, pois é preciso ver muitas coisas de muitos lados diferentes”. O ensaio cumpre a promessa.

Schwarz é generoso com a obra do compositor: brilhantismo, inteligência, complexidade dialética, sensibilidade -não faltam conotações positivas à condução do argumento. É raro que uma obra literária recente receba escrutínio tão minucioso. Nesse sentido, não está em discussão apenas a vitalidade de “Verdade Tropical”, mas da crítica literária produzida hoje.

O livro também traz dois textos que avançam na interpretação sobre Machado de Assis, tema que domina sua obra. Num deles, cujo argumento se desenrola a partir de uma crônica, “O Punhal de Martinha”, o ensaísta reivindica que a universalidade de Machado seja buscada na matéria local brasileira, e não em sua superação, como quer parte da crítica estrangeira.

Leia a íntegra da entrevista, concedida por e-mail, em que Schwarz comenta a resposta de Caetano a seu ensaio e fala de outros textos do livro, como a resposta ao crítico Alfredo Bosi sobre as “Ideias Fora do Lugar”, célebre ensaio de 1973.

Como leu a entrevista de Caetano?

Roberto Schwarz– Ele mudou de assunto. Em vez de comentar o meu artigo, que é o que estava em pauta, Caetano falou da Coreia do Norte, da União Soviética, de Cuba, da USP, da esquerda obtusa, de Mangabeira Unger etc. Parece piada. Ao contrário do que a entrevista faz supor, não escrevi para pegar em Caetano o rótulo de direitista, e muito menos de esquerdista, mas de herói representativo e problemático. Procurei acompanhar de perto a sua prosa, concatenar e compactar as suas posições, de modo a tornar visíveis as questões de fundo que estão lá e não são óbvias. Tomei o cuidado de sempre apresentar as próprias formulações de Caetano, para que o leitor possa refletir a respeito e tirar conclusões com independência. É o que [Bertolt] Brecht chamava de apresentar os materiais.

Como crítico literário, sou sensível à força estética do livro, naturalmente para analisá-la. No caso, fazem parte inseparável dela as atitudes mais controvertidas do autor, tais como a autoindulgência desmedida, o confusionismo calculado e os momentos de complacência com a ditadura (os militares tomaram o poder “executando um gesto exigido pela necessidade de perpetuar essas desigualdades que têm se mostrado o único modo de a economia brasileira funcionar”, Verdade Tropical, pág. 15), o que não exclui a simpatia pela guerrilha.

É ler para crer. À maneira dos romances narrados em espírito de provocação -por exemplo, as Memórias Póstumas de Brás CubasVerdade Tropical deve muito de seu interesse literário a certa desfaçatez camaleônica em que Caetano, o seu narrador, é mestre. Penso não forçar a mão dizendo que a representatividade histórica do livro passa por aí. E o seu caráter problemático também, já que o quase romance não deixa de ser um depoimento.

O sr. vê fundamento na cobrança de Caetano de que a esquerda comente temas como a Coreia do Norte?

R.S. – É claro que a reflexão informada e crítica sobre as experiências do “socialismo real” é indispensável à esquerda, e aliás ela existe. [Theodor] Adorno, que Caetano absurdamente menciona como inimigo da liberdade, é uma grande figura dessa reflexão no campo estético. Dito isso, penso que, no caso, o interesse pela Coreia do Norte é sobretudo cortina de fumaça para não falar de meu livro.

Por que o ensaio vem à tona 15 anos depois do livro de Caetano?

R.S. – Logo que o livro saiu, vi que era notável à sua maneira e merecia discussão. Como não tenho pressa, levei 15 anos para sentar e escrever. Ainda assim, espero não ter perdido o bonde.

Em que medida o texto aprofunda os argumentos sobre a Tropicália expostos em seu ensaio “Cultura e Política: 1964-1969”?

R.S. – “Cultura e Política” foi escrito em 1969, na hora pior da ditadura e logo após a eclosão da Tropicália. Verdade Tropical, de Caetano, que reapresenta aqueles tempos, foi publicado 30 anos depois, em pleno triunfo neoliberal. Já Um Percurso de Nosso Tempo”, redigido em 2011, tem a ver com a crise atual do capitalismo. São três momentos distintos.

A Tropicália do fim dos anos 60 debochava -valentemente- do Brasil pós-golpe, quando a ditadura buscava conjugar a modernização capitalista ao universo retrógrado de “tradição, família e propriedade”. A fórmula artística dos tropicalistas, muito bem achada, que juntava formas supermodernas e internacionais a matérias ligadas ao atraso do país patriarcal, era uma paródia desse impasse. Ela alegorizava a incapacidade do Brasil de se modernizar de maneira socialmente coerente.

Era uma visão crítica, bastante desesperada, de muito interesse artístico, à qual se misturava certa euforia com a nova indústria cultural, que estava nascendo. Ao retomar o assunto em 1997, nos anos FHC, Caetano atenuou o anterior aspecto negativo ou crítico e deu mais realce ao encanto dos absurdos sociais brasileiros, tão “nossos”. Um tropicalismo quase ufanista e algo edificante.

No ensaio procurei acompanhar e discutir estes deslocamentos.

Qual a diferença entre fazer crítica dialética hoje e nos anos 1960-70?

R.S. – A crise atual -de que não estamos tomando muito conhecimento no Brasil- veio precedida pela derrota das tentativas práticas bem como das ideias da esquerda. Assim, não faltam contradições agudas, mas elas parecem não apontar para lugar nenhum, ou só para mais do mesmo.

A crítica dialética naturalmente não pode fingir que sabe uma resposta, mas não tem por que acatar como positiva uma realidade que é evidentemente negativa, nem tem por que renunciar à busca de superações. As contradições estão aí, fermentando.

Não é uma novidade auspiciosa que o Brasil possa não tomar muito conhecimento da crise atual?

R.S. – Desconhecer uma crise mundial, só porque ela não está nos tocando no momento, é sempre uma ignorância, sobretudo para intelectuais.

No livro há uma conferência feita em 2009 sobre “As Ideias Fora do Lugar” (1973) e uma nota de resposta a um questionamento à tese feita por Alfredo Bosi. A que o sr. atribui essa longevidade?

R.S. – Suponho que ela se deva à existência real do problema, que surgiu com a Independência, no século 19, e até hoje teima em não desaparecer. A uns, as ideias dos países centrais, que nos servem de modelo, parecem o remédio para todos os males; a outros, uma importação postiça e “fora do lugar”, que precisa ser recusada -o que os condena a perder o contato com o pensamento do mundo contemporâneo.

Como entender a questão? Procurei comentá-la e sobretudo esclarecer os mal-entendidos ligados a esse título de ensaio, que teve sorte e ficou conhecido, mas causou bastante confusão.

O título do livro alude ao ensaio sobre a recepção da obra de Machado de Assis no exterior, no qual o sr. busca mostrar como a “universalidade” do autor está na finura com que ele lida com a matéria local.

R.S. – É essa a questão que tentei estudar. O reconhecimento de Machado no estrangeiro é crescente e não precisou da reflexão sobre o Brasil para ocorrer. O escritor entrou para o cânon dos grandes do Ocidente, onde ocupa um lugar diferenciado, sem necessitar da referência a seu país.

Ao passo que no Brasil se formou uma tradição crítica para a qual Machado é extraordinário justamente porque soube inventar uma forma adequada à nossa peculiaridade histórica e social. São explicações opostas para a grandeza de um mesmo escritor.

Como entender essa diferença? Quais as suas implicações? São os problemas que meu ensaio explora, examinando de mais perto e politizando a oposição clássica entre o local e o universal, agora recolocada em termos da ordem mundial contemporânea.

O sr. não parte dos romances, como seria de esperar, mas da crônica machadiana. Vai nisso alguma intenção particular?

R.S. – De fato, há uma crônica, “O Punhal de Martinha”, em que Machado dramatiza a questão do local e do universal com uma graça notável, antecipando cem anos de debate crítico. Procurei analisá-la com cuidado igual ao que merecem os grandes romances e penso que o resultado surpreende.

Aí está, no plano modesto da crônica, uma variante do narrador das obras-primas machadianas, dilacerado entre a irradiação da Europa e os cafundós do Brasil, que aliás podem estar na capital. Trata-se de um mal-estar característico, ou, também, do despeito histórico mundial das elites progressistas de um país periférico. Por inesperado que isso seja, o ar de família com os manifestos modernistas de Oswald e com o clima do tropicalismo salta aos olhos.

Em entrevista de 2011, Antonio Candido afirmou que a crítica literária acadêmica se tornou uma atividade sem riscos, com a nova geração se dedicando apenas a autores consagrados. O sr. concorda?

R.S. – Se entendi bem, ele estaria valorizando o momento de risco intelectual, de escolha a descoberto, sem o qual a crítica literária se rotiniza ou reduz ao informe publicitário. Mas posso ter entendido mal.

O seu livro é uma coletânea de ensaios circunstanciais, mas há bastante unidade entre eles, que parecem concebidos dentro de um mesmo propósito. É deliberado?

R.S. – Agradeço a pergunta. É claro que os ensaios têm assunto, origem e forma muito diversa. Mas há a matéria brasileira em comum, com sua estrutura que atravessa os tempos e acaba determinando um conjunto de questões consistentes, retomadas e variadas nos diferentes trabalhos e sugerindo aprofundamentos que valeria a pena perseguir. Para mim mesmo, as correspondências entre a crônica machadiana, a poesia minimalista de Francisco Alvim, a visão pau-brasil e as montagens tropicalistas, por exemplo, vieram como uma surpresa.

Noutro plano, os ensaios fazem ver uma coleção de percursos intelectuais e artísticos de nosso tempo, em contraste muitas vezes agudo, cujo conjunto convida a pensar. Aos pedaços, são contribuições para o autoexame de uma geração.

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[Flávio Moura é jornalista e doutor em sociologia pela USP]