Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

José Queirós

“A arte de redigir um título é um talento par­ti­cu­lar­mente apre­ci­ado nas redac­ções dos jor­nais. Um título bem cons­truído, ape­la­tivo quanto baste para sus­ci­tar inte­resse ou curi­o­si­dade, é meio cami­nho andado para con­vi­dar à lei­tura de uma peça jor­na­lís­tica. Para desem­pe­nhar bem esse papel, deve tam­bém cum­prir as exi­gên­cias do rigor pro­fis­si­o­nal, a come­çar pela regra de ser total­mente fiel ao texto que enca­beça. Os títu­los des­cri­ti­vos que o PÚBLICO pri­vi­le­gia nas peças noti­ci­o­sas — e mesmo os de cariz mais inter­pre­ta­tivo, quando as cir­cuns­tân­cias o jus­ti­fi­cam — não podem dizer ou suge­rir o que as notí­cias não dizem, sob pena de se tor­na­rem enga­no­sos ou, no limite, manipulatórios.

Equi­lí­brio, cla­reza, rele­vân­cia e novi­dade são outras vir­tu­des de um título cor­recto e efi­caz, que deve levar o lei­tor a aperceber-se de ime­di­ato do con­teúdo essen­cial de uma notí­cia. Às difi­cul­da­des que podem sur­gir para arti­cu­lar esses requi­si­tos em fra­ses sim­ples e escor­rei­tas acresce o obs­tá­culo fre­quen­te­mente cons­ti­tuído pelos mode­los grá­fi­cos adop­ta­dos na imprensa. A limi­ta­ção resul­tante da exis­tên­cia de um número máximo pré-definido de ‘bati­das’ (letras e espa­ços entre pala­vras) é um desa­fio cons­tante para os edi­to­res, que nem sem­pre é supe­rado de acordo com as melho­res prá­ti­cas de titulagem.

Quando isso acon­tece, o resul­tado pode ser um título críp­tico ou envi­e­sado, ou des­res­pei­ta­dor do con­teúdo da notí­cia. Ou ainda, mais fre­quen­te­mente, e devido à pre­o­cu­pa­ção em eco­no­mi­zar carac­te­res, um pon­tapé na gra­má­tica e na inte­gri­dade da lín­gua, como exem­pli­fi­cam alguns casos ante­ri­or­mente refe­ri­dos neste espaço. Feliz­mente, o novo gra­fismo do PÚBLICO parece ter ali­vi­ado alguma rigi­dez exces­siva neste domí­nio. Resta veri­fi­car se é sufi­ci­ente para liber­tar os auto­res de alguns títu­los de um esforço de com­pac­ta­ção que não pou­cas vezes des­fi­gura a escrita e se revela tão inte­ri­o­ri­zado que surge a ins­pi­rar títu­los defi­ci­en­tes na pró­pria edi­ção on line, em que não é neces­sá­rio tor­tu­rar as fra­ses para eco­no­mi­zar caracteres.

Entre os vários moti­vos que podem con­cor­rer para um título defei­tu­oso — e pode­ria acrescentar-se, entre outros ini­mi­gos do rigor, a ten­ta­ção nem sem­pre con­tida de recor­rer a ter­mi­no­lo­gias e fór­mu­las con­ta­mi­na­das pela lin­gua­gem da publi­ci­dade ou da pro­pa­ganda —, o que tem vindo a avul­tar nas recla­ma­ções que me che­gam, fruto do escru­tí­nio de lei­to­res mais aten­tos e exi­gen­tes, é o que se prende com even­tu­ais falhas no cum­pri­mento da regra que referi em pri­meiro lugar: os títu­los devem ser fiéis aos tex­tos que encabeçam.

Entre alguns exem­plos recen­tes, começo por citar um título de capa da edi­ção do pas­sado dia 7: ‘Fim das refor­mas ante­ci­pa­das só para admi­ti­dos após 2005″. Sucede que a deci­são gover­na­men­tal que se pre­ten­dia noti­ciar — anun­ci­ada, como se sabe, sem aviso pré­vio — foi a de sus­pen­der esse regime, e não de o extin­guir (não é a mesma coisa, por muito com­pre­en­sí­vel que seja a sus­peita de que a sus­pen­são de cer­tos direi­tos soci­ais sig­ni­fi­que, para quem decide, um pre­lú­dio da sua supressão).

Pior, nada no título e na cha­mada de pri­meira página indi­cava que a refe­rên­cia aos ‘admi­ti­dos após 2005″ tinha por alvo ape­nas os tra­ba­lha­do­res da fun­ção pública. É certo que ambos esses dados infor­ma­ti­vos esta­vam con­ti­dos na notí­cia dedi­cada ao tema na página 13 dessa edi­ção, e aí cor­rec­ta­mente des­ta­ca­dos em título. O que não retira gra­vi­dade ao facto de, como escreve o lei­tor João Cunha Serra, de Lis­boa, ‘a cha­mada (…) que, como tudo o que se escreve na pri­meira página, tem como uma das fun­ções prin­ci­pais atrair lei­to­res para o jor­nal, dar a enten­der, enga­no­sa­mente, que a sus­pen­são das refor­mas ante­ci­pa­das ape­nas se apli­ca­ria aos tra­ba­lha­do­res admi­ti­dos após 2005, isto é, a todos os tra­ba­lha­do­res nes­sas condições’.

O lei­tor José Pinto Men­des, de Coim­bra, cri­ti­cou por seu lado o título esco­lhido para a entre­vista ao ex-ministro Cor­reia de Cam­pos (edi­ção da pas­sada segunda-feira, pági­nas 10 a 12): ‘Não faz sen­tido nenhum encer­rar a nossa melhor mater­ni­dade’. Uma frase obvi­a­mente esco­lhida pela sua actu­a­li­dade — decor­riam já os pro­tes­tos con­tra a inten­ção anun­ci­ada pelo Minis­té­rio da Saúde de vir a fechar a Mater­ni­dade Alfredo da Costa (MAC), em Lis­boa—, mas que o lei­tor con­si­dera não tra­du­zir fiel­mente as decla­ra­ções do actual euro­de­pu­tado soci­a­lista e o seu pen­sa­mento sobre o tema, que aliás foi expli­ci­tado com cla­reza em artigo assi­nado pelo pró­prio no dia seguinte, na sua coluna sema­nal de opi­nião no PÚBLICO.

De facto, a decla­ra­ção de Cor­reia de Cam­pos, trans­crita na entre­vista, fora a seguinte: ‘ A MAC tem de ser inte­grada num hos­pi­tal cen­tral. Mas, neste momento, sem estar cons­truído o Hos­pi­tal de Todos-os-Santos (Ori­en­tal de Lis­boa), não tem sen­tido nenhum encer­rar a nossa melhor mater­ni­dade’. E, mais adi­ante, defen­dendo a impor­tân­cia da aber­tura desse novo esta­be­le­ci­mento de saúde: ‘A MAC deve ser trans­por­tada para o hos­pi­tal de Todos-os-Santos’. Na opi­nião do lei­tor, ao iso­lar uma parte da decla­ra­ção do ex-ministro e destacá-la em título, ‘des­pida de con­texto’, o PÚBLICO terá pre­ten­dido ‘colar o Dr. Cor­reia de Cam­pos aos com­pre­en­sí­veis movi­men­tos emo­ci­o­nais pró-MAC, o que, rigo­ro­sa­mente, não é ver­da­deiro’, já que este con­cor­da­ria com a ideia de que ‘os ser­vi­ços de obs­te­trí­cia devem ser inte­gra­dos numa uni­dade com todas as valên­cias médico-cirúrgicas’, enten­dendo no entanto que ‘este não é o momento’ para o fazer.

Miguel Gas­par, direc­tor adjunto do jor­nal e um dos auto­res da entre­vista, afirma que a esco­lha do título não decor­reu de ‘um desejo de cola­gem de Cor­reia de Cam­pos a movi­men­tos mais emo­ci­o­nais rela­ti­va­mente ao fecho da MAC’, mas sim ‘do facto de o entre­vis­tado diver­gir objec­ti­va­mente da estra­té­gia do encer­ra­mento da MAC tal qual ela foi for­mu­lada’, o que foi con­si­de­rado ‘um con­tri­buto rele­vante para o debate em curso’. Menos sólido do que esta expli­ca­ção, que res­ponde ao que na recla­ma­ção de José Pinto Men­des pode ser visto como um pro­cesso de inten­ção, parece-me ser o seu argu­mento de que, na óptica do polí­tico entre­vis­tado, a MAC afi­nal ‘não encer­ra­ria’, pois ‘seria trans­fe­rida com armas, baga­gens e equi­pas para um hos­pi­tal, em vez de as suas equi­pas serem dis­tri­buí­das por vários hos­pi­tais’. A con­clu­são é for­çada: se decorre das expli­ca­ções do ex-ministro que é essa real­mente a sua visão do pro­blema, con­ti­nua a ser um facto que o que Cor­reia de Cam­pos disse não foi que a mater­ni­dade não deve­ria vir a fechar, mas sim que não deve­ria ser encer­rada ‘neste momento’ (ou ‘a curto prazo’, como escre­veu no dia seguinte), antes da cons­tru­ção do novo hos­pi­tal. Ao rasu­rar esse ele­mento deter­mi­nante, o título da entre­vista não é, de facto, rigoroso.

Uma dis­tor­ção mais evi­dente do con­teúdo de decla­ra­ções polí­ti­cas que, pela sua rele­vân­cia, se tor­nam notí­cia, pôde encontrar-se na página 6 da edi­ção da pas­sada sexta-feira, 19.04, no título ‘Pas­sos clas­si­fica ame­aça da UGT de denun­ciar acordo de con­cer­ta­ção social como brin­ca­deira do 1º de Maio’. O primeiro-ministro por­tu­guês tinha pro­cu­rado des­va­lo­ri­zar na vés­pera, em Lon­dres, a posi­ção daquela cen­tral sin­di­cal — que exige ao governo o cum­pri­mento dos com­pro­mis­sos assu­mi­dos para a tomada de medi­das favo­rá­veis ao cres­ci­mento eco­nó­mico e ao emprego—, com o seguinte comen­tá­rio, citado na notí­cia do PÚBLICO: ‘Penso que a data do 1º de Maio pode gerar algum tipo de debate a nível domés­tico, mas nós esta­mos a imple­men­tar o pro­grama num pro­cesso de consenso’.

Pense-se o que se pen­sar do comen­tá­rio de Pas­sos Coe­lho — por exem­plo, que é ofen­sivo para os seus par­cei­ros na con­cer­ta­ção social, que é des­lo­cado na boca de um gover­nante ou até que demons­tra uma arro­gân­cia nociva para o pro­cla­mado inte­resse em man­ter o que chama ‘pro­cesso de con­senso’ —, a ver­dade é que o primeiro-ministro não falou de ‘brin­ca­deira’. O que se des­cre­veu no título como sendo fac­tual não tem fun­da­mento na notí­cia publi­cada. É abu­sivo e enga­na­dor. O con­ceito estra­nho e pouco sério de ‘brin­ca­deira do 1º de Maio’ é no caso da exclu­siva res­pon­sa­bi­li­dade do PÚBLICO, onde deve­ria saber-se que a data tra­di­ci­o­nal­mente come­mo­rada pelos sin­di­ca­tos não se con­funde com o 1 de Abril ou com o Carnaval.”