Em 2010, o programa da Rede Globo Profissão Repórter visitou Ouro Preto porque queria fazer uma reportagem sobre o cotidiano de parte dos estudantes da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Quando exibido, o programa deu destaque às festas realizadas pelos alunos dentro de algumas repúblicas. O que a reportagem falhou em mostrar é que na cidade existe um conjunto de repúblicas que são muito mais do que meras casas que abrigam estudantes. São as chamadas “repúblicas federais”. As repúblicas federais são casas que pertencem à universidade. Morar nelas dá algumas vantagens, das quais cito duas: não há aluguel e tais casas estão entre as melhores de Ouro Preto. Isso é significativo porque os estudantes têm a oportunidade de morar em boas casas sem ter de se preocupar com os altos alugueis cobrados de quem tem de morar nas repúblicas que não são da universidade. Essas últimas são chamadas “repúblicas particulares”.
Sendo assim, seria de se esperar que a universidade abrigasse dentro das repúblicas federais os estudantes mais carentes. Curiosamente, não é isso que ocorre. Pela seguinte razão: a UFOP concede aos moradores das repúblicas federais grande autonomia na escolha de quem vai morar e de quem não vai morar nas casas. Geralmente, os veteranos escolhem os novos moradores seguindo algo como um critério de afinidade, segundo o qual entra quem tem mais afinidade com os próprios veteranos. Na prática, isso significa só o seguinte: os funcionários públicos responsáveis por essas moradias deixam que critérios privados decidam quem irá desfrutar de um benefício público. Um efeito que se segue daí é que pessoas que realmente precisam da moradia pública são excluídas porque podem não cair nas graças dos atuais moradores.
Por que não fazem nada para mudar?
Além do critério de afinidade, o postulante a morador precisa satisfazer alguns outros requisitos. O primeiro deles é aceitar acriticamente todos os mitos que permeiam o ambiente das repúblicas federais. Um exemplo é a ideia de que a república não é apenas uma casa, mas sim, uma entidade a que o morador deve defender o nome, a honra e a bandeira. É curioso que o aceite disso se assemelha ao que George Orwell chamou já em 1945 de “nacionalismo”. Ele entendia nacionalismo como “o hábito de se identificar com uma única nação ou unidade, colocando-a além do bem e do mal e não reconhecer dever algum que não seja o de defender seus interesses”. Troque “unidade” por “repúblicas federais” e tem-se uma boa noção do que acontece.
O segundo é passar pela batalha. O termo “batalha” é um eufemismo que designa um conjunto de trotes aos quais os calouros têm de se submeter caso queiram ter acesso à moradia pública. Exemplos: todos os objetos pessoais deles são espalhados pela casa ou por fora da casa; eles são acordados no meio da noite com baldes de água fria; são obrigados a correr pelados na rua; têm de beber cachaça ou outra coisa qualquer quando os moradores mais antigos mandam; são coagidos a serem promíscuos etc. Isso sem contar a enorme pressão psicológica que faz com que vários calouros não suportem os trotes e abandonem a casa. Como se não bastasse, há ainda um fato particularmente escandaloso: as repúblicas federais não aceitam moradores homossexuais. Em outras palavras, a Universidade Federal de Ouro Preto possui um sistema público de moradia que, além de tudo, discrimina homossexuais.
A pergunta principal que fica é a seguinte: por qual razão o reitor João Luiz Martins, o vice-reitor Antenor Rodrigues Barbosa Júnior e os outros responsáveis não fazem nada de radical para mudar o que ocorre? Outra pergunta também se impõe: a quem interessa que as coisas continuem como estão? O fato é que as coisas continuam como estão. Seria, portanto, uma boa ideia que uma equipe de jornalismo investigasse a fundo o problema. Uma reportagem dessa natureza seria muito mais informativa do que aquela apresentada por Caco Barcelos e sua equipe.
O texto de George Orwell referido no texto se chama ‘‘Notes on Nationalism’’ e foi publicado originalmente em outubro de 1945, em Polemic.
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[Aluízio de Araújo Couto Júnior é estudante de Filosofia na UFOP]