Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um “duro golpe” na ética jornalística

O Jornal da Band exibido no dia 4 de maio trouxe um furo de reportagem absolutamente bombástico: todas as previsões “catastróficas” sobre o aquecimento global das últimas décadas estavam erradas. Na verdade, a Terra está esfriando. E, por isso, os ambientalistas que defendem o veto ao Código Florestal sofreram “um duro golpe”. Sim, estas pérolas de nonsense foram veiculadas no principal telejornal da emissora paulista em horário nobre, para todo o Brasil e com o tom de imparcialidade e informação confiável exigido de qualquer programa do gênero. Cômico? Sim, sem dúvida. Mas, sabendo que aquela não era a edição de 1o de abril, a gente deixa de rir e começa a se preocupar.

A suposta notícia é construída a partir de uma entrevista dada há alguns dias pelo britânico James Lovelock. Ele afirma que exagerou no catastrofismo sobre o clima e que suas previsões estavam erradas. O problema é que Lovelock, com sua Teoria de Gaia – segundo a qual o planeta é considerado um único organismo vivo –, não costuma servir de referência a ninguém que estude o clima com rigor. O fato de hoje, aos 92 anos, desdizer seus próprios palpites, é cientificamente irrelevante. Ou, no mínimo, questionável. Mas a intenção da TV Bandeirantes não era provocar um debate esclarecedor sobre o tema. O viés editorial estava explícito desde a primeira frase: “Uma notícia que atinge o centro da argumentação dos ambientalistas que defendem o veto ao novo Código Florestal aprovado pelo Congresso”.

Nenhum climatologista defende a tese do aquecimento global?

Mentira. Qualquer bom jornalista sabe que isso é mentira. Inclusive os competentes e experientes Ricardo Boechat e Joelmir Beting, que comandam a bancada. O “centro da argumentação” dos ambientalistas que defendem o veto ao novo Código Florestal não é nem nunca foi o aquecimento global. O centro da argumentação é muito mais simples, local e observável: preservar as margens dos rios, topos de morro e reservas legais é providência obrigatória para manter a sustentabilidade dos ecossistemas, o suprimento de água, o equilíbrio do clima, a própria segurança da população contra enchentes, entre outros benefícios sociais e ambientais; combater o desmatamento, não anistiar grandes desmatadores. A reportagem, intencionalmente, promove a confusão entre dois temas diferentes: o ceticismo quanto ao aquecimento global e as discussões sobre o Código Florestal brasileiro. Como se não bastasse, ainda omite qualquer opinião que corrobore o aquecimento ou condene o novo Código. Ouvir o outro lado? Não. O Jornal da Band ignorou a regra número um dos manuais de jornalismo.

O texto insiste em carregar nas tintas: a autocrítica de Lovelock “representa um duro golpe no discurso ambientalista em todo o planeta”. Opa! Duro golpe? Quem disse isso? Algum ambientalista, de qualquer ponto do planeta, ficou deprimido, se atirou pela janela ou veio a público anunciar que não acredita mais no aquecimento global e agora defenderá a ampliação dos combustíveis fósseis? Ah, não é isso. “Duro golpe” não é informação. “Duro golpe” é linha editorial. É desejo, é torcida do defensores do novo Código, é manipulação rasteira na tentativa de desmoralizar o crescente movimento “Veta, Dilma”.

A reportagem segue, mas a fórmula está dada: ridicularizar o discurso ambientalista, defender as alterações do Código Florestal. Pinçam uma única frase de artigo de Marina Silva na tentativa de desqualificar seu discurso (por que não a entrevistaram, para esclarecer a questão?). Apresentam um climatologista que afirma, com segurança, que nos próximos anos “vamos mergulhar num resfriamento global”. O telejornal não informa a que instituição está filiado o climatologista responsável por informação tão categórica. E, talvez num ato falho, seu nome aparece errado nos créditos: “Luiz Alberto Morion”. O Google informa que o verdadeiro nome é Luis Carlos Morion, professor da Universidade Federal de Alagoas. Na mesma pesquisa, descobre-se que a Band vem se servindo bastante deste entrevistado ultimamente. Nada contra. Mas será que não existe um único climatologista que ainda defenda a tese do aquecimento global? A depender do Jornal da Band, não saberemos.

Muito democrático

Por fim, abre-se espaço a Xico Graziano, agrônomo e ex-presidente do Incra, que defende a manutenção integral do texto aprovado pelo Congresso: “Se a presidente vetar é um desrespeito à democracia.” Outra revelação surpreendente, esta! Poderia jurar que o veto é um direito constitucional do presidente eleito democraticamente. Algum depoimento a favor do veto? Não. Talvez o telejornal não considere democrático abrir espaço para este ponto de vista.

Que o Grupo Band tem fortes vínculos com os interesses do agronegócio é sabido. Mas não custa relembrar, pela enésima vez, que as emissoras de rádio e TV são concessões públicas com compromissos a zelar para com o interesse social e o direito coletivo à informação. Ainda mais em se tratando da prática jornalística. Não vale tudo. Quando quiserem produzir mensagem editorializada, que deixem isso explícito.

Detalhe: este verdadeiro pastelão travestido em reportagem séria coincidentemente foi ao ar no encerramento da mesma edição do telejornal em que se mostrou Camila Pitanga interrompendo uma cerimônia oficial para pedir diretamente à presidente: “Veta, Dilma”. Pela relevância do evento, era impossível não exibir o recado de Pitanga. O que nos leva a pensar que a produção precisou correr para aprontar a matéria final, em que deixa claro o que o espectador deve pensar sobre o assunto. Dada a pressa, talvez não tenham tido tempo de fazer algo mais qualificado. Ou de disfarçar melhor seus interesses.

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[Lorenzo Aldé é jornalista e membro da Escola de Ativismo]