Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O caminho da democracia no Oriente Médio

Quando Mohamed Bouazizi se imolou em protesto contra o desemprego e as duras condições sociais na Tunísia, os estudantes e profissionais, assim como os pobres e a classe média, reagiram aderindo a demonstrações espontâneas contra o regime, denunciando as difíceis condições de vida e o freqüente abuso de poder por parte do governo. A tendência à agitação civil se espalhou para países vizinhos e configurou a Primavera Árabe: uma série de movimentos populares que estorou no Norte da África e no Oriente Médio em 2010 e 2011. Mesmo que não tivessem uma liderança clara ou reivindicações bem definidas, em cada país, esses movimentos tiveram a participação de centenas de milhares de pessoas, que demonstravam um descontentamento que, caso não fosse traduzido em uma lista de políticas esperadas, certamente poderia ser tratado através da remoção dos longos governos autoritários desses países.

Em geral, considera-se que a Primavera Árabe tenha afetado treze países, entre eles a Argélia, Egito, Líbia, Mauritânia, Marrocos, Sudão e Tunísia, na África, e Bahrain, Jordânia, Kuwait, Omã, Arábia Saudita, Síria e Iêmen, no Oriente Médio (Lapouge, 2011). Apesar das semelhanças acima mencionadas, os movimentos da Primavera Árabe têm sido significativamente diferentes sob pelo menos três perspectivas. Primeiramente, os países afetados diferem consideravelmente no que diz respeito aos seus históricos econômicos e sociais, indo desde países de alta renda no Golfo, como Bahrain e Kuwait, até países de baixa renda, como Mauritânia e Sudão. Em segundo lugar, os movimentos foram engatilhados por causas específicas em cada lugar. Na Argélia, as pessoas protestaram contra as condições de moradia, na Arábia Saudita, marcharam em favor dos direitos da mulher. Em terceiro lugar, seus resultados foram notavelmente diferentes. No Marrocos, Argélia, Jordânia, Kuwait, Mauritânia e Sudão, foram feitas concessões ao povo. Em Bahrain, Arábia Saudita e Omã, a repressão diminuiu os protestos e, logo, os ganhos foram mínimos. No Iêmen, Tunísia, Egito e Líbia, as manifestações se tornaram grandes movimentos sociais, virando inclusive conflitos armados, e levaram a importantes mudanças. Na Síria, os embates ainda estão acontecendo e o resultado é imprevisível. A Primavera Árabe abalou diferentes sociedades, gerando concessões governamentais limitadas em algumas e significativas mudanças políticas em outras.

Nesse contexto, a possibilidade de esses movimentos levarem ao desenvolvimento de uma democracia na região é vista com entusiasmo no mundo todo. O acadêmico em relações internacionais Kenneth Waltz propôs a análise de fenômenos sociais em três níveis, os quais chamou de “imagens”: o nível internacional, o doméstico e o nível de liderança individual (Doyle, 1997:128). Portanto, este artigo discutirá questões referentes a cada um desses níveis a fim de obter uma clara compreensão dos desenvolvimentos esperados da Primavera Árabe.

Sociedade ativa

As políticas no mundo árabe tiveram uma relação tradicionalmente próxima com circunstâncias internacionais. Durante décadas, governos autoritários eram considerados meios para assegurar a estabilidade nos países Árabes, que experimentaram inúmeras disputas políticas internas, algumas das quais levaram a guerras civis no passado. O controle rígido da imprensa e do ativismo político manteve os partidos islâmicos e grupos de esquerda longe do poder, bem como radicais extremistas afastados do cenário político. A fim de exercer tal controle, os governos desses países limitaram as liberdades civis e permitiram participação política restrita. No entanto, isto não impediu que a comunidade internacional se envolvesse em relações diplomáticas e econômicas com tais governos, uma circunstância que contribuiu para sua longa sobrevivência. Governos de natureza maquiavélica – que governavam com o objetivo de perpetuar o poder da elite, ao invés do bem comum (Doyle, 1997:105) – foram capazes de encontrar apoio internacional, pois eram vistos como uma condição para obter estabilidade e paz em curto prazo. Essa suposição contrasta fortemente com o projeto de paz perpétua de Kant, o qual afirma que apenas a crescente presença de democracias liberais ajudará a garantir a harmonia entre estados (Doyle, 1997:256). Portanto, apoiar regimes autoritários poderia temporariamente impedir ameaças à estabilidade global, mas somente o surgimento de sociedades democráticas resultaria na paz duradoura.

Durante a Primavera Árabe, uma das condições que contribuíram para a remoção de ditaduras no Egito, Tunísia, e principalmente na Líbia, foi a condenação internacional de governos autoritários. Mesmo que a intervenção armada na Líbia tenha sido controversa, a maior parte da comunidade internacional apoiou, ao invés dos governos, os movimentos populares, os quais foram considerados legítimos. A compreensão de que os governos controlados pelo povo podem tornar o mundo árabe mais estável é uma nova e importante tendência, que poderá ajudar as democracias emergentes a se desenvolverem economicamente e se beneficiarem da assistência internacional. Os desafios permanecem, pois os países com as mais fortes ligações com a economia global e estratégias militares ocidentais tiveram seus movimentos da Primavera Árabe recebidos com menos entusiasmo. Isto demonstra que, mesmo que esteja se fortalecendo, a tendência a apoiar a democracia como melhor forma de obter estabilidade ainda é um processo em desenvolvimento.

Com relação a outra das imagens de Waltz, existem diversas condições domésticas influenciando a possibilidade de a democracia ganhar forças na região. Três delas serão examinadas nos próximos parágrafos: em primeiro lugar, o fato de que a democracia deverá ser gradualmente construída; em segundo lugar, porque os partidos islâmicos estão vencendo as eleições, deverão provar que podem contribuir para um governo secular e democrático; em terceiro lugar, disputas entre grupos internos (alguns podem chamá-las de disputas sectárias) deverão ser controladas.

No Egito, Tunísia e Líbia, a Primavera Árabe levou à remoção de longas ditaduras e à fixação de datas para eleições de governos representativos. Apesar de a adoção desta política certamente apontar para um regime político mais democrático, não é o suficiente para assegurar o desenvolvimento de uma democracia. A teoria política contemporânea esclarece as dificuldades que esses países poderão enfrentar a fim de desenvolver democracias que funcionem.

O cientista político Robert Dahl, em seu notório Prefácio à Teoria Democrática (1989), destacou que sistemas democráticos pressupõem: um sistema de votação, a participação dos cidadãos, a disponibilidade de informações aliada à compreensão de assuntos nacionais, a capacidade popular de controlar o programa de trabalhos do governo, e a habilidade de todos os indivíduos aptos participarem do sistema como um todo. Dahl reconhece que, mesmo que alguns países estejam mais avançados na implementação destas características de democracias, estes fatores sempre poderão ser mais bem desenvolvidos. Citando a teoria de Dahl, os Modelos de Democracia (1987) de David Held apresentam a democracia como um processo duplo, que requer a combinação de instituições de estado funcionais, com uma vigorosa sociedade civil. Tendo em vista tais premissas, pode-se observar que a mera adoção de procedimentos eleitorais democráticos é apenas um pequeno passo em direção à criação da democracia. Uma vez que estes povos da Primavera Árabe tenham sido capazes de obter algum grau de participação política, apenas sua habilidade de criar instituições impessoais e dentro da lei, e de desenvolver uma sociedade ativa, uma imprensa independente e um governo responsável os permitirão estar no caminho certo para uma democracia ainda mais madura e gratificante.

Projetos do Estado

Ainda em relação ao panorama doméstico, em todos os países onde houve mudança no governo ou no regime, e onde as eleições já aconteceram, os partidos islâmicos lideraram nas pesquisas. Esta característica mostra que os povos árabes não estão revoltados contra a religião islâmica, ou contra seus valores culturais básicos. Estão animados com uma modernização das sociedades islâmicas, que tornaria os direitos civis e políticos compatíveis com a fé muçulmana. Como demonstrado na Turquia atualmente, podem existir governos seculares que adotem os procedimentos democráticos, onde todos os cidadãos possuam direitos iguais, e ainda assim tenham o Islã como sua principal religião nacional. Nos países que recentemente emergiram de décadas de governo conservador, a democracia só poderá ganhar força se partidos islâmicos, que estiveram excluídos por tanto tempo, aceitarem dividir poder e ceder à separação de questões religiosas e assuntos de estado.

Analistas como Thomas Friedman (2011) destacam que a existência de governos autoritários apresenta certa relação com disputas entre grupos internos em países árabes, o que criou o contexto necessário para o surgimento de governos com “punhos de ferro”. De agora em diante, estes grupos sociais testarão sua habilidade de coexistir e tentar influenciar políticas dentro dos limites da disputa política justa. Caso conflitos sectários venham a emergir, estarão condenados a ser controlados por novos e poderosos juízes.

Portanto, a fim de consolidar sua aderência à democracia, Egito, Tunísia e Líbia deverão enfrentar desafios como: assegurar que os partidos islâmicos, que devem futuramente liderar as instituições do Estado, irão permanecer abertos a reformas liberais, desenvolver sociedades civis participativas e informadas, e manter a sociedade unida pelo impulso para a democracia, ao invés desta romper-se em disputas pelo poder interno.

A última imagem a ser analisada é o papel da liderança individual nos eventos atuais e futuros. Durante os séculos XIXe XX, todos os países da Primavera Árabe passaram por processos de emancipação e adquiriram independência no sentido contemporâneo. No entanto, as mesmas elites locais que articularam a formação desses países adotaram políticas que privilegiavam as pequenas elites em detrimento das massas. No fim, líderes populistas emergiram transferindo poder dos reis para os militares, como foi o caso de Gamal Abdel Nasser, do Egito (Hobsbawm, 1995). Apesar de se comprometerem a defender objetivos nacionais, estes novos governantes não concederam maiores liberdades e participação ao povo.

Neste contexto, é importante destacar a ausência de líderes claros nos movimentos da Primavera Árabe. Em oportunidades anteriores, a liderança adquiria um caráter despótico ou paternalista, que inibia o desenvolvimento da participação pública em assuntos nacionais. Parece um sinal positivo o fato de que, atualmente, os cidadãos não estão seguindo a idéia de alguém, mas sim seu próprio bom senso. Pode-se argumentar, portanto, que a Primavera Árabe representa o despertar das nações árabes, que buscam governar seu próprio país. As nações parecem estar tentando superar seus líderes a fim de assumir seu papel como maiores controladoras dos projetos do Estado. A ausência de um líder carismático distancia a possibilidade de manipulação de massas populares, que poderia levar a novas formas de ditadura.

Direitos civis

A Primavera dos Povos Europeus em 1830 e em 1848 constituiu movimentos nos quais revoltas populares alcançaram algumas concessões específicas, mas falharam em remover os traços remanescentes do absolutismo, como demonstrado pelos governos de Guilherme III da Prússia e do governante eleito da França que se tornou imperador, Napoleão III (Hobsbawm, 1995). No entanto, estes movimentos mostraram que a burguesia e o povo haviam se tornado politicamente ativos e não se contentariam em ter assuntos nacionais decididos sem que fossem considerados seus pontos de vista. Nas décadas que seguintes à Primavera dos Povos, a participação popular no governo cresceu firmemente. As formas de liberalismo ressoaram no mundo inteiro e inspiraram envolvimentos populares similares, principalmente nas Américas – no Brasil, por exemplo, um imperador que desconsiderava continuamente o parlamento foi removido do poder em 1830, e o imperador seguinte, que assumiu em 1840, trabalhou principalmente para conciliar as facções parlamentares opostas (Cervo & Bueno, 1992). A Primavera Árabe pode funcionar da mesma forma: em curto prazo, importantes conquistas podem ser contrariadas por certas recaídas, porém, como a força da opinião pública foi liberada, pode haver um impulso ativo para reformas e o tipo de envolvimento popular que estimula a democracia.

A Primavera Árabe tem sido um movimento de massas que seguem mais seu próprio bom senso do que a orientação de alguém. Apesar do fato de que novos líderes emergirão no seu devido tempo para representar os movimentos, a ausência de uma liderança clara foi um fator positivo, pois mostra que nações estão assumindo seus próprios países. Mesmo que ocorram eleições democráticas, isto não leva exatamente à direção certa, pois uma democracia só poderá emergir por meio do sistema duplo de instituições federais e sociedades civis, ambas as quais devem ser consolidadas em longo prazo. À medida que os povos se voltaram contra a opressão no mundo árabe, sua iniciativa foi atendida com ações de apoio da comunidade internacional. O entendimento de que governos não-democráticos eram necessários a fim de prover estabilidade para a região parece estar diminuindo em face à clássica perspectiva Kantiana de que a paz emerge em democracias.

A Primavera Árabe floresce em meio a um conjunto particular de circunstâncias que permitiu que se alcançasse algum grau de sucesso. Ditadores foram derrubados e cidadãos escolheram partidos islâmicos como seus representantes legítimos. O movimento tende ao desenvolvimento de democracias nos países afetados, e a conciliar a fé muçulmana com os direitos civis e políticos. Países que estiveram à margem da civilização durante milênios poderão novamente se ajustar à sua herança cultural. Caso tenham êxito, serão capazes de inspirar toda a região para um novo modelo que una religião, liberalismo, democracia e paz.

Referências bibliográficas:

____. “Revoltas Mudam Face da Região”. Jornal O Estado de S.Paulo. December17th, 2011.

CERVO, Amado Luiz & BUENO, Clodoaldo (1992). História da política exterior doBrasil. São Paulo: Editora Ática.

DAHL, Robert (1989). Um Prefácio à Teoria Democrática. Rio de Janeiro: JorgeZahar.

DOYLE, Michael (1997). Ways of War and Peace. New York: WW Norton.

FRIEDMAN, Thomas. “Egypt’s doomed election”. The New York Times Online.Available here.

HELD, David (1987). Modelos de Democracia. Belo Horizonte: Paideia.

HOBSBAWN, Eric (1995). A Era dos Extremos: o breve século São Paulo: Companhiadas Letras, 1995.

LAPOUGE, Gilles (2011). “Especial Primavera Árabe”. Jornal O Estado de S.Paulo.