Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Carta à Rede Globo

Em razão da divulgação de propaganda institucional dessa emissora de televisão acerca da Classificação Indicativa do Ministério da Justiça, o Instituto Alana vem apresentar a seguinte manifestação pública.


I. Sobre o Instituto Alana.


O Instituto Alana é uma organização sem fins lucrativos que desenvolve atividades educacionais, culturais, de fomento à articulação social e de defesa dos direitos da criança e do adolescente perante o consumismo ao qual são expostos.


Para divulgar e debater idéias sobre as questões relacionadas ao consumismo na infância e na adolescência, assim como para apontar meios de minimizar e prevenir os prejuízos decorrentes do marketing infanto-juvenil criou o projeto ‘Criança & Consumo‘.


Por meio do projeto ‘Criança & Consumo’, o Instituto Alana procura disponibilizar instrumentos de apoio e informações sobre o impacto do consumismo na formação de crianças e adolescentes, fomentando a reflexão a respeito da força que a mídia e o marketing infanto-juvenil possuem na vida, nos hábitos e nos valores dessas pessoas ainda em formação.


As grandes preocupações do Instituto Alana são com os resultados apontados como conseqüência do investimento maciço na mercantilização da infância e da juventude, a saber: o materialismo excessivo; a incidência alarmante de obesidade infantil; a violência na juventude; a sexualidade precoce e irresponsável, e o desgaste das relações sociais; dentre outros.


II. A propaganda institucional veiculada por essa emissora


Recentemente, tem sido veiculada propaganda institucional por meio da qual essa emissora de televisão apresenta sua posição acerca da Classificação Indicativa do Ministério da Justiça, mostrando uma menina, com mãos que cobrem seus olhos sendo lentamente retiradas, enquanto ao fundo é feita a seguinte locução:




‘Todo programa de TV aberta tem uma classificação por idade, mas o que conta mesmo é a sua opinião.


Ninguém melhor do que os pais pra saber o que os seus filhos devem assistir.


A televisão brasileira oferece informação, diversão e entretenimento, de qualidade e de graça.


O limite é você quem dá.’


Porém, diferentemente do mencionado na aludida locução, não é a opinião dos pais que ‘conta mesmo’, mas, nos termos do artigo 227 da Constituição Federal, ‘é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade o direito … à educação, ao lazer … à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade …’ Além disso, de acordo com o mesmo dispositivo legal, é igualmente dever de tais instituições colocar as crianças e os adolescentes ‘a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão’.


De fato, não é somente aos pais que cabe o controle da programação que seus filhos, crianças e adolescentes, assistem. Também a sociedade e o Estado têm o dever de atentar para o conteúdo da televisão brasileira.


As emissoras de televisão aberta, como a presente, além de fazerem parte da sociedade e, por isso, já daí terem o dever de proteger as crianças e os adolescentes de toda a forma de exploração – inclusive daquela realizada pelos meios de comunicação – são concessionárias de serviço público e, portanto, sujeitas aos preceitos do Estado, que também tem semelhante dever.


Nos termos do inciso XII, do artigo 21 da Constituição Federal, compete à União a exploração, direta ou mediante autorização, concessão ou permissão, dos serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens. Assim, ao delegar o direito de transmissão de programas televisivos por meio de espectro eletromagnético, um bem público, o Estado cria esse que é um serviço público.


Serviço público o qual, por sua importância, está regulado na Constituição Federal, que, nos termos do artigo 221, estipulou os princípios a serem atendidos pelas emissoras concessionárias:




‘Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:


I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;


II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;


III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;


IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.’


Ora, como o público alvo dessa emissora de televisão abarca toda a população, passando por crianças, adolescentes, adultos e idosos, é bem certo que, por ser concessionária de um serviço público, tem a obrigação legal – da qual não pode se escusar – de cuidar para que a sua programação, além de respeitar os aludidos princípios, não explore os mais vulneráveis e suscetíveis aos abusos, como é o caso das crianças e dos adolescentes.


Não são apenas os pais que devem dizer o que seus filhos devem ou podem assistir na televisão, como alude a questionada propaganda institucional, mas as concessionárias desse serviço público têm, por lei, o dever de proteger as crianças e adolescentes de programas de baixa qualidade e/ou que explorem as deficiências inerentes ao estágio de desenvolvimento em que se encontram.


Mesmo porque, sabe-se que o impacto dos programas televisivos na formação da opinião pública é enorme e que é maior ainda quando se trata do público infanto-juvenil. A responsabilidade das emissoras de televisão e, principalmente dessa, que é a maior e mais assistida no país, é muito séria.


A simples sugestão de que seriam tão-somente os pais os grandes responsáveis pela programação que crianças e adolescentes assistem é absurda, equivocada e ilegal.


Aliás, não foi por outro motivo que a Constituição Federal, no artigo 21, inciso XVI, determinou a competência da União para ‘exercer a classificação, para efeito indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão’.


Não há, no tocante à programação televisiva, plena ou irrestrita liberdade de agir. Ao revés, a televisão deve ser controlada e analisada diariamente, a fim de o direito público delegado às emissoras de televisão ser constantemente monitorado.


Nem se diga que o controle da programação televisiva incidiria em censura e por isso violaria o disposto no artigo 220 da Constituição Federal. Sabe-se, muitíssimo bem, que a liberdade de expressão não é absoluta – assim como nenhuma outra o é –, mas deve ser observada de acordo com o conjunto do ordenamento legal e conforme o estabelecido em outras garantias e liberdades.


Na hipótese, o dever de proteção absoluta à criança e ao adolescente deve ser igualmente considerado, a fim de ser estabelecido um equilíbrio entre ambas as normas constitucionais.


E aqui, não se trata de mera indicação facultativa, mas de classificação indicativa obrigatória, a ser realizada e respeitada, nos termos da regulamentação estabelecida pelo Departamento de Classificação Indicativa do Ministério da Justiça, de forma que a emissora de televisão não exiba programação em horário diverso daquele fixado em sua classificação.


A propósito, cumpre ser observado que o Estatuto da Criança e do Adolescente, nos seus artigos 71, 74 caput e 76 é bastante enfático no que concerne à proibição de programação, diversão ou espetáculos contrários à proteção das crianças e dos adolescentes:




‘Art. 71. A criança e o adolescente têm direito a informação, cultura, lazer, esportes, diversões, espetáculos e produtos e serviços que respeitem sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.’


‘Art. 74. O Poder Público, através do órgão competente, regulará as diversões e espetáculos públicos, informando sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada.’


‘Art. 76. As emissoras de rádio e televisão somente exibirão, no horário recomendado para o público infanto-juvenil, programas com finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas.’


E mais, o Estatuto da Criança e do Adolescente, no artigo 254, estipula ainda a seguinte sanção administrativa para aqueles que descumprirem tais normas:




‘Art. 254. Transmitir, através de rádio ou televisão, espetáculo em horário diverso do autorizado ou sem seu aviso de classificação:


Pena – multa de 20 (vinte) a 100 (cem) salários de referência; duplicada em caso de reincidência a autoridade judiciária poderá determinar a suspensão da programação da emissora por até 2 (dois) dias.’


Assim, ante a inexistência de meios eficazes de controle do conteúdo televisivo em relação ao que crianças e adolescentes assistem – ou acessam, pois tudo isso vale igualmente para a internet, como novo meio de comunicação social de massa – deve o Estado intervir e garantir a proteção desse público diante de conteúdos potencialmente ofensivos.


No caso da televisão aberta, não havendo o pouco famoso ‘v-chip’, ou algo do tipo, bem como não se podendo presumir a presença dos pais o tempo todo ao lado de seus filhos, é dever do Estado regular a programação de TV e dever das emissoras submeter sua programação à dita classificação indicativa.


III. Conclusão.


Por tudo isso, o Instituto Alana vem manifestar publicamente sua completa desaprovação quanto à informação passada na propaganda institucional dessa emissora que ora se analisa, na medida em que apresenta equivocada mensagem aos telespectadores, eximindo-se de sua responsabilidade e de seu dever legal de proteção do público infanto-juvenil contra toda e qualquer forma de exploração. [São Paulo, 7 de fevereiro de 2007]

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Coordenadora do Projeto ‘Criança & Consumo’ do Instituto Alana