Thursday, 28 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Censura ao debate sobre drogas e mau jornalismo

Foi com espanto que li neste Observatório da Imprensa o artigo “A apologia ao uso da maconha”. Acontece que existe um amplo movimento da sociedade civil condenando o mau jornalismo, para dizer o mínimo, praticado pelo periódico O Dia na matéria citada pelo artigo. Pensei que o site era Observatório da Imprensa, e não elogio cego à imprensa e à censura de um livro citado na matéria.

A censura foi omitida no artigo em questão, mas se pode ver aqui a nota que a denuncia (veja a íntegra abaixo).

Há coisas que são tão abomináveis que não dá para a gente se calar. A matéria de capa do jornal O Dia de 12/05/2012 (“Saúde defende maconha”), além de criar sensacionalismo barato e tentar criminalizar os trabalhadores de saúde mental do município e a redução de danos, tem erros factuais gravíssimos e omissões em todas as citações, jornalismo totalmente preguiçoso. Observem o que afirma a matéria de O Dia: Na página 248 da publicação, Antônio Nery Filho e mais três autores – Edward MacRae, Luiz Alberto Tavares, Marlize Rêgo – defendem a liberação e a regulamentação do porte, cultivo e distribuição não comercial de cannabis sativa (maconha). “Uma outra dimensão do plantio, cultivo, semeio e colheita pode ser vislumbrada, não como ato não permitido, mas como efetivo e eficaz mecanismo de redução de danos”, diz o texto. Esse trecho não foi escrito pelas pessoas indicadas pela matéria, mas por uma outra pesquisadora: Emmanuela Vilar Lins.

Citação distorcida

O artigo escrito por ela tem o seguinte objeto, descrito pela autora: 1. Introito: O presente trabalho tem como objeto de estudo a Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, que entrou em vigor em 8 de outubro de 2006. Esta lei veio substituir a antiga Lei nº 6.368, de 21 de outubro de 1976, c/c 10.409, de 11 de janeiro de 2002, comumente conhecidas como Lei de Entorpecentes. A nova lei, que tem sido denominada pela doutrina como A Nova Lei de Drogas, traz, em seu bojo, regramento tanto para os usuários de drogas ilícitas quanto para os traficantes. Todavia, aqui serão tratadas apenas as novas conformações atinentes aos primeiros (LINS, 2009, p.243). Ou seja, ela está, no artigo, discutindo a lei atual e anterior sobre drogas e as interpretações possíveis sobre as normas legais.

Como pode ser visto na página 248, e que foi de modo conveniente omitida na matéria, como segue: O §1º do referido art. 28 encerra o antigo debate existente acerca do ato de plantar, cultivar semear e colher, que, agora, passa, expressamente, a portar a mesma carga antijurídica dos atos descritos no parágrafo anterior: é ato do usuário. Omissa, a lei antiga, quanto ao plantio de drogas para consumo próprio, duas correntes se formaram: uma para entender que este ato deveria ser enquadrado nas mesmas hipóteses de tráfico, enquanto a outra parcela – e, na ótica deste trabalho, a mais razoável –, já com a nova lei pacificada, a compreendia dentro da mesma dimensão do uso e, pois, com apenação mais branda (LINS, p.248).

No parágrafo seguinte do artigo está contido o trecho citado de modo totalmente descontextualizado na matéria de O Dia: Uma outra dimensão do plantio, cultivo, semeio e colheita pode ser vislumbrada, não como ato não permitido, mas como efetivo e eficaz mecanismo de redução de danos. Permitindo ao usuário produzir a droga que consome, o Estado estaria contribuindo com a sua não inserção no mundo da violência e do tráfico, não só em face da segurança à integridade física e emocional, bem como à própria saúde, pois é notório o conhecimento de que às drogas são adicionadas outras substâncias, seja para seu barateamento, seja para a sua ocultação, e que, comumente, são mais prejudiciais e nocivas do que a própria droga que se pretendia consumir (ibidem). No jornal O Dia está assim: Na mesma página os escritores justificam: “Permitindo ao usuário produzir a droga que consome, o Estado estaria contribuindo com a não inserção (do viciado) no mundo da violência e do tráfico, e em face da segurança e integridade física e emocional, como sua própria saúde.”

Razão entorpecida

E não para por aí. O Dia consegue errar quase tudo neste panfleto de má-fé. O jornalista Francisco Edson Alves escreve: Já na página 248, uma ‘dica’ inusitada e perigosa: “… 100 gramas de maconha podem ser considerados uma quantidade razoável para um usuário diário”. Só que isso não está na página indicada pelo jornalista – acho que ele só leu a página 248, se leu realmente alguma coisa – e sim, na página 251, e foi pinçada no meio do seguinte parágrafo: A natureza e a quantidade são critérios que devem ser pontuados conjuntamente, pois, a segunda está, essencialmente, atrelada à especificidade de cada substância. Assim, por exemplo, 100 gramas de cannabis (maconha) poderá ser considerado uma quantidade razoável para um usuário diário desta substância, o mesmo não podendo ser dito em face da cocaína ou heroína, cuja quantidade necessária para se obter o resultado esperado, bem como o seu nível de tolerância, é muito menor do que o da cannabis. A quantidade só será exorbitante, portanto, em face da natureza da substância em particular (LINS, 248).

O “jornalista” omite o contexto para fazer sensacionalismo como se a autora estivesse recomendando o uso de 100 gramas diárias de cannabis quando ela está exemplificando a sua argumentação. O artigo não foi analisado na sua totalidade e nem mesmo a autora foi consultada; preferiram criar um pânico moral sobre o tema. O jornal ainda tenta criminalizar no seu arrazoado o culto do Santo Daime de forma bisonha, como segue: “A seita Santo Daime, doutrina surgida na região amazônica e cujo um dos adeptos, fora de si, matou o cartunista Glauco em 2010, surpreendentemente é considerada pelos autores no livro como ‘exemplo de redução de danos’. Na seita, bebe-se um chá com propriedades alucinógenas.” O “jornalista” que escreveu isso foi totalmente irresponsável, do mesmo jeito que foi igualmente irresponsável quem plantou essa matéria no jornal. Tentaram pichar publicamente e de modo tosco autores conhecidos e respeitados internacionalmente. A retirada do livro do blog da saúde mental do município do Rio é uma censura grave e que precisa ser repudiada pelos movimentos sociais e trabalhadores de saúde de todo o Brasil. Como diz a Maria Lúcia Karam, isso deve ser fruto de “uma razão entorpecida”.

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Nota pública sobre a matéria publicada no jornal O Diaem 12/05/2012 com o título “Sugestão é plantar em casa – Saúde do Rio defende o uso da maconha” e a censura imposta pelo prefeito Eduardo Paes, do Rio de Janeiro, ao livro Toxicomanias: incidências clínicas e socioantropológicas(Editora da Universidade Federal da Bahia).

Foi com muita surpresa que os organizadores do livro Toxicomanias: incidências clínicas e socioantropológicas, publicado em 2009, pelo Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (Cetad/UFBA), em parceria com a Editora da Universidade Federal da Bahia (EDUFBA), tiveram conhecimento da distorcida matéria publicada pelo jornal O Dia, em 12/05/2012, bem como da censura imposta pelo prefeito Eduardo Paes à veiculação da referida publicação em site da Coordenação de Saúde Mental, programa da Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro.

O Cetad/UFBA, ao longo dos seus vinte sete anos de funcionamento, voltados para a atenção aos usuários de drogas e seus familiares, além de atuar no campo da pesquisa e do ensino de graduação e pós-graduação, foi responsável pela reimplantação e sustentação inovadora de Programas de Redução de Riscos e Danos para usuários de drogas e pela criação da estratégia Consultório de Rua, dentre outras atividades, merecendo o reconhecimento nacional e internacional pelo pioneirismo dessas ações no Brasil.

O livro Toxicomanias: incidências clínicas e socioantropológicas https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ufba/183/1/Toxicomanias.pdf questionado de forma leviana pelo jornal O Dia, seguido da inoportuna decisão do prefeito Eduardo Paes determinando sua retirada do site da Coordenação de Saúde Mental do Rio de Janeiro, é o quarto volume da Coleção Drogas: Clínica e Cultura, que conta atualmente com cinco livros publicados pelo Cetad através da Editora da Universidade Federal da Bahia (EDUFBA). Essas publicações, que tem sido uma referência para estudantes e profissionais de diversas áreas, trazem à tona as reflexões e o debate em torno do uso e abuso de drogas, enfocando o sofrimento humano e suas complexas relações sociais, através de múltiplos olhares, no âmbito da socioantropologia, da comunicação, da medicina, da psicanálise, da lei, com artigos de profissionais e pesquisadores de reconhecida experiência nesse campo. A matéria trata a publicação de forma distorcida e equivocada, fazendo um recorte descontextualizado e até criminoso de um dos artigos cujo título é “A nova Lei de Drogas e o usuário: a emergência de uma política pautada na prevenção, na redução de danos, na assistência e na reinserção social”, e que traz a discussão de múltiplos aspectos que pautam as leis que regem o usuário e o consumo de drogas em diversos países, e da necessidade de mudanças na atual legislação brasileira que favoreçam o acesso do usuário aos serviços de atenção e saúde. Longe de fazer apologia ou indicação de consumo de qualquer droga, como indica irresponsavelmente o jornal, o artigo referido se debruça sobre uma política de descriminalização do usuário de drogas, em favor da vida e pela reafirmação de uma Política de Redução de Danos, sustentada como política de estado pela Senad e pelo Ministério da Saúde brasileiro e conquistada arduamente por todos aqueles que ao longo desses anos lidam com essa questão.

No livro alguns artigos de reconhecidos pesquisadores brasileiros no campo da socioantropologia versam sobre o Santo Daime, prática religiosa de origem amazônica e que legalmente utiliza a ahyuasca nos seus rituais. Considerado um verdadeiro patrimônio da nossa cultura essa prática é tratada pelo jornal O Dia de forma discriminatória e desrespeitosa.

Estamos frontalmente em oposição àqueles que, equivocadamente, defendem a criminalização do usuário de drogas e que buscam nas internações compulsórias e na privação da liberdade o modo de tratar aqueles que necessitam de atenção. Reafirmamos nosso apoio a todas as iniciativas que visem informar, debater e ampliar uma rede de atenção ao usuário de drogas e que leve em conta os princípios éticos da liberdade e da responsabilidade individual. Manifestamos aqui nosso veemente repúdio à forma sensacionalista e irresponsável como o jornal O Dia abordou uma questão tão grave e complexa e a censura inaceitável do prefeito Eduardo Paes à livre manifestação da reflexão e do debate democrático.

Os organizadores:

Antonio Nery Filho

Edward Macrae

Luiz Alberto Tavares

Marlize Rêgo

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[Rafael Dias é psicólogo, Rio de Janeiro, RJ]