Os 7 km que marcaram o calvário de João Hélio, morto ao ser arrastado pelo lado de fora do carro em que estava, revela mais que uma violência epidêmica. Evidencia vazio de sentido e ausência de projeto – tema que a parcela conservadora da sociedade e seus colossos midiáticos não pretendem discutir.
Viver é procurar um sentido para nossos desejos e realizá-los no trajeto.Os sete quilômetros que marcaram o calvário de João Hélio Fernandes, seis anos, morto ao ser arrastado pelo lado de fora do carro em que estava, revela mais que uma violência epidêmica. Evidencia vazio de sentido e ausência de projeto. Um país que, por seus fracionamentos internos, não logrou constituir uma comunidade de pessoas que compartilham destino comum, mostra sua face mais bruta.
O bárbaro assassinato do garoto foi habilmente instrumentalizado pela parcela conservadora da sociedade brasileira e seus colossos midiáticos. Não se pretende debater causas ou promover o pensamento crítico a respeito das complexas bases sociais onde estão assentadas as verdadeiras raízes da violência. Isso, segundo a bílis vomitada na imprensa, é discussão periférica, discurso dos que pregam a inércia ante a ação criminosa.
O que está em curso é um projeto de linchamento, uma vingança classista que, paradoxalmente, clama, ao mesmo tempo, pela Lei de Talião e por uma legislação penal mais severa. Não peçam sensatez nesse momento.Não mencionem a necessidade de implementação de políticas públicas de inclusão. O que vale para os dispositivos agenciados é a desnaturação do ‘outro’ de classe. Algo que o revele como anomalia a ser eliminada. Custe o que custar, doa a quem doer.
Legislação penal mais rigorosa e sistemas prisionais mais punitivos não são apenas demandas simplórias.São,antes de tudo, plataformas de uma ideologia que pretende ocultar o aspecto central do problema: nossa sociedade é estruturalmente violenta e antidemocrática. E é assim que funcionam seus mecanismos fundamentais de reprodução.
Defensores de direitos humanos são apresentados, na estrutura narrativa da grande mídia, como românticos que produzem platitudes a partir de esquemas sociológicos abstratos.Pessoas que ainda não compreenderam que cidadania não requer sujeitos de direito, mas consumidores pacificados pela punição da malta que, sem poder, partilha o imaginário consumista.
O sociólogo Luiz Eduardo Soares, em réplica aos que consideram o Estatuto da Criança e do Adolescente pouco severo indaga: ‘qual severidade melhor serviria á sociedade brasileira? Aquela que é adjetiva, que faz profissão de fé na retórica da intolerância, da dureza policial, do vigor punitivo, mas que na prática concorre para a reprodução da irracionalidade institucionalizada?’
Melhor homenagem
Afinal, o que desejamos? Consolidar avanços ou reforçar descasos? As manifestações conservadoras não deixam dúvida. Discussões sobre desigualdade e exclusão não estão na ordem do dia.
A matéria de capa da revista Época (edição 457, de 19/02/2007) não poderia ser mais didática. O sugestivo título ‘As lições da Colômbia para o Brasil’ remete ao modelo desejado. O texto da jornalista Ruth Aquino não deixa dúvida quanto aos propósitos editoriais da publicação. ‘Como argumentar que no Brasil falta dinheiro para a segurança, se o PIB da Colômbia equivale ao do Estado do Paraná (US$98 bilhões) e o PIB do Brasil é oito vezes maior,US$ 796 bilhões’. E a marcha batida ao uribismo vai até a última linha.
O que não se revela ao leitor é que a política de ‘segurança democrática’ desvia recursos humanos e econômicos que poderiam estar sendo aplicados em soluções de longo prazo, fato que contrariaria os interesses dos grupos de maior poder econômico.Também não são mencionadas as relações estreitas do governo com grupos paramilitares, responsáveis pelo tráfico de cocaína e ataques aos direitos humanos. É omitido ao longo da reportagem que o presidente Uribe ignora com freqüência recomendações da Comissão de Direitos Humanos da ONU e do Gabinete do Alto Comissariado para os Direitos Humanos das Nações Unidas em Bogotá. Será esse o projeto de país das Organizações Globo? Um Estado que tem em seu entorno o tráfico e o extermínio?
Talvez devêssemos aprofundar o debate a partir das palavras do saudoso Hélio Pellegrino. ‘ Somos humanos na medida de renúncias decisivas, de recalques e exílios amargos, de perdas e danos que ferem de morte nossas exigências ordinárias'( Édipo e Liberdade, 1989). Ou partimos daí ou nos deixaremos levar pela recorrente folhetinização de tragédias.
A melhor homenagem que se pode prestar a memória de João Hélio é não fazer de sua tragédia pretexto para o fascismo de sempre.
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Professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro