Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A ponta do iceberg da corrupção

Fiquei com um eco de Watergate na cabeça quando terminei de ler O Operador, o último livro de Lucas Figueiredo, que procura explicar ‘como (e a mando de quem) Marcos Valério irrigou os cofres do PSDB e do PT’ (o seu subtítulo). Richard Nixon seria reeleito presidente dos Estados Unidos, 30 anos atrás, e provavelmente cumpriria seu segundo mandato até o fim, arrematando-o como reconhecido estadista, mesmo se não tivesse patrocinado e encoberto a desastrada espionagem na sede do Partido Democrata, no conjunto de escritórios do edifício Watergate, em Washington. O escândalo obrigou Trick Dick à renúncia, para escapar ao primeiro impeachment da história americana. Saiu pela porta dos fundos da história.

A espionagem em nada contribuiu para aumentar o poder de fogo de Nixon. Mas era a ponta de um imenso iceberg de golpes sujos, falcatruas e ilegalidades incrustadas na carreira dele e de quase todos os maiores políticos dos EUA. Era uma compulsão, como a que a famosa historinha caricaturizou: a aranha pica com seu veneno o animal que a atravessava de um lado para o outro do rio, mesmo sabendo que assim ambos morreriam (‘é a minha natureza’, se justifica, antes de afundar).

O valerioduto, que conduziu ao mensalão, que nunca existiu como tal, parece representar o mesmo fenômeno, agravado pelo fato de que o PT corrompeu – a si mesmo e a terceiros – para fazer o que Fernando Henrique Cardoso não conseguiu, com ou sem os mesmos recursos. Conforme Lucas observa, ‘o PT, um partido supostamente de esquerda, pagava a partidos de centro e de direita para facilitar a aprovação de uma agenda liberal’. Ela incluía a prorrogação da cobrança da CPMF, o chamado imposto do cheque, e a reforma da previdência, que acabou com a aposentadoria integral para servidores públicos e taxou os inativos, medidas que antes de ser governo o PT combatia.

Quase-nada, quase-tudo

Para entrar nesse esquema, parlamentares do PT, PL, PP, PTB e PMDB, que comandavam suas bancadas no Congresso, receberam cerca de 17 milhões de reais por intermédio de Marcos Valério. Mas, na maior parte dos casos, o destino final permanecia no rol de mistérios da política. O mistério é essa permanente tentação de aumentar o poder a qualquer custo, mesmo que de forma irracional e, no fim, autofágica.

O grande mérito do trabalho do jornalista mineiro é conduzir o leitor por uma trilha com início, meio e fim, esclarecendo o enredo de uma história que, por excesso de acontecimentos e abundância de informações, deve ter-se tornado uma charada ou uma carta enigmática para boa parte da opinião pública brasileira.

Em meio a tantas abordagens possíveis de acontecimentos como esses, a peculiaridade (e mérito) própria do jornalismo é tratar os fatos concretamente. As histórias são feitas por pessoas de carne e osso, em situações bem determinadas, num contexto dado. Lucas conseguiu um ponto de equilíbrio, embora não totalmente satisfatório (certamente devido ao prazo curto que teve para escrever esse instant-book, graças a uma licença de seis meses), entre a técnica de repórteres como os Woodward & Bernstein, resvalando freqüentemente para a ficção, e o reducionismo científico (à sociologia, psicologia, ciência política, etc.).

Queremos saber quem são os Valérios da vida, mas não a ponto de detalhes como a cor da meia no dia em que entrou na agência de propaganda SMP&B pela primeira vez, em julho de 1996 (quando a empresa estava se afogando numa dívida de 60 milhões de dólares), transformando-a no curinga das propinas e da evasão de dinheiro público, que sangrava o erário; ou quantos passos deu para chegar ao gabinete do todo-poderoso ministro José Dirceu.

Se dispusesse de mais tempo, Lucas conseguiria informações preciosas para compor um quadro mais completo do estranho casal Marcos Valério & Renilda (caberia o complemento: Cia. Ltda.), que, no vendaval do ano passado, completou 20 anos de casado, formando um par representativo desses insólitos yuppies (ou naïves) brasileiros. Marido e mulher eram donos de 56 contas bancárias e 13 cartões de crédito. Com toda essa envergadura, o publicitário se permitiu comprar 13 cavalos de raça para a filha, Nathália, imobilizando 1,3 milhão reais.

Os dois emergem do quase-nada para o quase-tudo num prazo curtíssimo, recorrendo a jeitinhos bem típicos da nacionalidade e valendo-se da patológica hipertrofia do executivo na pensa república brasileira, que permitem enriquecimentos ilícitos, atos ilegais e concentração de poder. Durante mais de dois anos Valério serviu ao PT e ao PSDB e ainda manobrou caixa 2 para PFL, PTB e PSB.

Empréstimos consignados

A novidade revelada por esse episódio, na década de 1990, está na substituição da era das empreiteiras da construção civil, antigas parceiras preferenciais do governo (e dos políticos), que antes comandavam sozinhas o processo, pelas agências de propaganda, exatamente porque o status se tornou quase tão importante quanto o dinheiro e a riqueza material (essa a razão da presença de Valério com papel destacado na peça).

Em outra circunstância, o mineiro Marcos Valério seria apenas um acidente, quando muito um coadjuvante, com direito a 15 segundos de fama. Mas era o homem certo, no lugar certo, para fazer a transição do aparente ao oculto, do legal ao ilegal, materializando os desejos de poderosos e candidatos a tal, enredando-se e envolvendo outros nessa promiscuidade sem barreiras, confusa ao observador de fora desse circuito: ‘Quando Valério operava, era sempre difícil saber se ele estava levando ou trazendo’, observa Lucas.

Nessa sofreguidão, as cautelas iam desaparecendo. Os ‘empréstimos’ que o BMG e o Banco Rural concederam ao PT, no valor de 66 milhões de reais, formariam 770 quilos em notas de 100 reais. Valério, o elo entre várias pontas dessa engrenagem, administrou 56 milhões de reais, ao longo de 28 meses (média de 63 mil reais por dia). A maior parte desse dinheiro foi transportada por motoboys pelas ruas de Belo Horizonte, que recebiam a ‘encomenda’ sem assinar nada nem conferir as cédulas.

Por causa dessa fragilidade, um assalto a um desses insólitos transportadores resultou na perda de 100 mil reais. Mas ninguém foi atrás: havia dinheiro bastante para compensar, tempo de menos e complicações a evitar. Ah, sim: o BMG acabara de entrar no negócio do empréstimo consignado, que lhe possibilitou realizar mais de 1,1 milhão de operações com aposentados, no valor de 2,5 bilhões de reais. O que são 100 mil reais?

Alvos maiores

Marcos Valério Fernandes de Souza era um novo personagem, adequado ao momento: ‘Valério não morava num bairro chique, mas sua casa era muito boa e, com as intermináveis obras de Renilda, melhorava ainda mais. Ele não tinha um curso superior, mas estava cada vez mais bem colocado e realizado profissionalmente. Não trabalhava no Banco Central, mas chegara ao seleto grupo de integrantes do Conselho do Bemge [Banco do Estado de Minas Gerais, privatizado]. Por que então Marcos Valério mentia? Talvez porque o status contasse tanto quanto o dinheiro e as posses’, explica Lucas. Seu patrimônio pessoal, que em 1997 era de 230 mil reais, cinco anos depois já era de 4 milhões de reais. O faturamento de suas empresas mais que dobrara entre 2000 e 2202: de 331 milhões de reais para 692 milhões de reais.

Lucas reconstitui a engrenagem da corrupção:

‘A coisa funcionava de duas maneiras. Na mais comum delas, detentores de cargos públicos embutiam uma sobra substancial nos contratos de publicidade dos órgãos que dirigiam. Na época da eleição, as agências usavam essa gordura para pagar despesas das campanhas dos candidatos indicados pelos clientes dos órgãos públicos. Em suma: desvio de dinheiro do Estado. Na segunda modalidade, empresas privadas e pessoas físicas que queriam doar dinheiro para políticos sem sair do anonimato faziam falsos contratos com as agências de propaganda. Em vez de o dinheiro alimentar alguma campanha publicitária, era então canalizado para as campanhas políticas’.

O dinheiro saía como água (ou, no caso, cartas) de órgãos como os Correios, cujo faturamento anual, de quase R$ 9 bilhões, foi colocado sob gestão retalhada entre partidos aliados, o PMDB e o PTB (mas o PT tratou de reservar para si o setor de tecnologia, o mais importante). O tumor começou a vir à tona no Departamento de Compras e Contratações, comandado por Maurício Marinho, funcionário da casa, com 26 anos de serviço (passou por Belém), flagrado num lance de corrupção explícita armado por ex-dedos duros (espiões ou arapongas, conforme a terminologia em vigor) do SNI, no valor de 3 mil reais.

Marinho foi execrado e obrigado a se aposentar, servindo quase como boi de piranha, exatamente quando a Novadadata, empresa fabricante de produtos de informática, de propriedade de Mauro Dutra, amigo de longa data de Lula da Silva, a quem hospedou em sua casa na praia de Búzios, no réveillon de 2001, tentava reajustar em 5 milhões de reais um contrato com os mesmos Correios. E muitos outros acertos estavam em curso, com alvos ainda maiores. Como os fundos de pensão, que administram 280 bilhões de reais em investimentos, de interesse direto do banco Opportunity, ‘maior fonte privada dos recursos de Valério’, diz Lucas, referindo-se ao império do banqueiro baiano Daniel Dantas, um dos mais controvertidos personagens desse universo, para o bem e para o mal, conforme aliados e inimigos.

‘Perspectiva otimista’

Se houvesse entidades da sociedade civil realmente empenhadas em abrir essas cavernas, Lucas Figueiredo poderia receber uma bolsa suficiente para poder voltar ao tema e ao livro para uma nova investida, enriquecendo a abordagem e nos brindando com mais informações preciosas. Seria aconselhável um mergulho em maior profundidade sobre pessoas como Delúbio Soares de Castro, que constituem a verdadeira face do PT, velho de mais de um quarto de século, no poder atual. Ou Silvinho Pereira, dirigente sindical com salário de 11 mil reais, pouco para tanta coisa (casa em Ilhabela, no rico litoral paulista, e um Land Rover ofertado por empresa que faturou 512 milhões de reais com a Petrobrás no primeiro ano de PT), mas imenso para o padrão do sindicalismo brasileiro (e de qualquer lugar).

Delúbio, que se tornou símbolo desse petismo de resultados, morava num apartamento de aluguel de dois quartos nos Jardins, em São Paulo. Não há provas de que tenha colocado dinheiro público ou de propina no bolso, como aconteceu com Marinho. Suas extravagâncias eram fumar charutos cubanos de 80 reais, beber vinhos finos (300 reais a unidade), excelentes uísques (de 500 reais a garrafa) e andar em carro blindado. Só de charuto, sua despesa devia alcançar 2,4 mil reais ao mês. De onde vinha o dinheiro para suportar essas extravagâncias? Só Delúbio era dado a elas? O fenômeno surgiu apenas quando o PT conquistou o poder ou vinha já de muito tempo antes?

Um PT que se corrompeu mesmo, nesse aspecto também refletindo o Grande Guia, que o jornalista paraense (há muito radicado em São Paulo) Luiz Maklouf Carvalho desnudou meticulosa e progressivamente (em Já vi esse filme, Geração Editorial, 2005, 615 páginas).

Sintomaticamente, tanto o livro de Maklouf quanto o de Lucas foram indevidamente ignorados pela grande imprensa. Apesar de todas as relativizações e restrições que o PT tem feito ao trabalho de Maklouf, ele se tornou uma fonte indispensável de consulta sobre a carreira do metalúrgico que, ao invés de virar suco, como de regra, virou presidente do país. E do partido que o referenda e também lhe serve frequëntemente de biombo, capaz de promover uma festa de posse (no primeiro mandato) de 1,5 milhão de reais (parte das despesas bancada pelo generoso Valério), gastar 661 mil reais para mobiliar, equipar e decorar sua sede em Brasília, no luxuoso edifício Varig, com aluguel de 15 mil reais mensais. Um partido que entre 2003 e 2004 movimentou 136 milhões de reais.

Ao invés de submeter essas estruturas apodrecidas a uma minuciosa vistoria, a grande imprensa se calou. Espertos, os personagens também preferiram nem tentar contestar as suas participações no enredo criminoso. A apuração que continua a ser feita pode não ser conclusiva. ‘Numa perspectiva otimista, os julgamentos não acontecerão em menos de oito anos. Uma coisa, entretanto, é previsível: devido à precariedade das provas, a lista de condenados deve ser pequena’, prevê Lucas Figueiredo, lembrando que Fernando Collor de Melo acabou sendo absolvido pelo Supremo Tribunal Federal da acusação feita contra ele pelo Procurador Geral da República, Aristides Junqueira. E que pode vir a acontecer o mesmo com a ‘quadrilha criminosa’ denunciada pelo atual procurador, Antônio Fernando de Souza.

Se for assim, não será uma boa moral. Mas isto é Brasil.

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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)