Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma decisão polêmica do STF

A decisão da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (em 21/11/2006) de referendar a liminar concedida pelo ministro Gilmar Mendes, na ação cautelar 1.406 – que permite a qualquer um o exercício do jornalismo até o julgamento final de um recurso extraordinário pelo próprio STF e na qual se discute a exigência da formação superior específica ou registro para exercer a atividade jornalística –, significa uma grave ameaça à democracia e ao direito à informação.

A medida tomada pelo STF revela desconhecimento de que cabe aos jornalistas profissionais a tarefa de identificar, apurar, interpretar, editar e publicar as informações relevantes para o interesse do público. Nas sociedades contemporâneas, cada vez mais complexas e dependentes da comunicação mediatizada, a qualidade das informações postas à disposição de cada cidadão passa pela exigência da formação especializada dos profissionais encarregados desta missão central para a manutenção da democracia.

Formação especializada

A formação superior específica vai muito além da simples defesa corporativa da reserva de mercado para os profissionais diplomados como, muitas vezes, transparece nos documentos dos defensores de que qualquer um exerça o jornalismo. O fator essencial para o repúdio à entrada indiscriminada na profissão vem da natureza deste trabalho no mundo contemporâneo.

Ao contrário do que ocorria no passado, seja no Jornalismo seja em outras áreas como Direito ou Odontologia, a complexidade da prática do jornalismo acaba por inviabilizar que o aprendizado seja feito no mercado de trabalho, pelo simples efeito de osmose dos colegas dentro das empresas jornalísticas.

Do mesmo modo que o conjunto de transformações sociais fez com que a figura do rábula seja hoje uma página virada no Direito, o acesso ao Jornalismo de pessoas totalmente despreparadas, sem uma formação específica, coloca em xeque a qualidade das informações que chega ao público.

Um bom jornalista necessita competência conceitual, técnica e ética. Nenhuma empresa jornalística tem condições de suprir este tipo de formação especializada, que deve ficar a cargo dos cursos de jornalismo. Como instituições autônomas, as universidades têm a independência suficiente para formar o futuro profissional, dando-lhe capacidade para compreender os desafios do seu tempo e as particularidades conceituais, técnicas e éticas da profissão.

Bem essencial à democracia

O jornalismo como profissão especializada, com formação específica, existe pelo menos desde o começo do século 20. No caso brasileiro, em 2007 completamos 60 anos da abertura do primeiro curso superior na Cásper Líbero, em 1947, então vinculada à PUC-SP. O acúmulo de conhecimentos neste mais de meio século de ensino superior em jornalismo pode ser conferido numa simples visita às bibliotecas para avaliar as edições dos jornais do século passado.

Ao revogar a legislação vigente, ainda que em caráter cautelar, a 2ª Turma do STF, mais que desqualificar uma profissão regulamentada, contraria a decisão do Tribunal Regional Federal de São Paulo de 2006, que, depois de um longo julgamento, cassou a liminar concedida pela juíza Carla Ríster, em 2001, assim como parece desconhecer que, tal como ocorre em todas as áreas do conhecimento, cabe à Universidade a missão de formar os futuros jornalistas.

A exigência da formação superior específica colocou o Brasil em situação privilegiada no campo do jornalismo. Hoje, a quase totalidade dos jornalistas brasileiros possui formação universitária, alcançando índices superiores a países como os Estados Unidos, no qual mais de 10% dos profissionais têm apenas o segundo grau e da França, onde esse percentual chega aos 15%.

Nos próximos meses, ao avaliar o mérito da questão, o plenário do Supremo Tribunal Federal vai ter uma oportunidade ímpar: optar entre olhar para o futuro e acompanhar as tendências mundiais, nas quais, cada vez mais, o exercício do jornalismo passa pela formação especializada, inclusive em países antes contrários à formação específica, como a Inglaterra, ou voltar ao passado, quando qualquer um podia praticar o jornalismo e quando se tolerava que a produção de um bem essencial para a manutenção da democracia – a informação jornalística – estivesse nas mãos de pessoas sem os conhecimentos conceituais e técnicos necessários para o exercício ético da profissão.

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Jornalista, professor na Universidade Federal de Santa Catarina e presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo