Ao se ler e ouvir as frequentes e contínuas notícias sobre a crescente violência nas grandes metrópoles brasileiras e também nas cidades interioranas do país, fica cada vez mais claro que, de novo, “perdemos o bonde” do salto para a condição de país desenvolvido, perdendo inclusive o lugar de “país do futuro”, algo que nitidamente deixou de existir na economia globalizada do século 21.
Rebatendo a querida frase do governo de que “País rico é país sem pobreza”, na realidade país realmente rico é país educado. E por que perdemos o dito bonde que, nos tempos atuais, já virou trem-bala? Porque deixamos de aproveitar o bom momento do país – resultado, façamos justiça, dos esforços somados dos governos de Itamar Franco, de Fernando Henrique Cardoso e de Lula, este último tendo contado também com a mãozinha da conjuntura internacional – para efetivamente mudarmos de rumo e de perfil como país.
Creio que não haja órgão do governo ou da imprensa que saiba ao certo, hoje, os bilhões de reais que já gastamos e ainda gastaremos com os preparativos para sediar a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. E foi aí que o trem-bala descarrilhou. Se o país não tivesse enveredado por essa, digamos, aventura populista, imaginemos o que poderíamos fazer com esses bilhões de reais, distribuídos em investimentos carimbados para múltiplas áreas tão prioritárias no país.
Falta de segurança
A primeira delas deveria certamente ser a educação. Vemos criminosos cada vez mais jovens, inclusive menores, matando cidadãos honestos e chefiando operações de tráfico de drogas. Nossas prisões, já lotadas e – até o cidadão honesto decerto haverá de convir – vergonhosas, não param de receber crescentes números de criminosos e os criminosos à solta também não param de aumentar. Um projeto governamental plurianual gigantesco, e suprapartidário, voltado para a educação, abrangendo de norte a sul do país, inclusive focando programas especiais para regiões carentes, sem dúvida nenhuma resultaria em melhora imediata dos índices de violência, melhora essa que seria crescente ao longo do tempo. E ainda teríamos o efeito colateral benéfico da progressiva melhora da nossa mão-de-obra, que estaria cada vez mais preparada para ocupar postos de trabalho qualificados, outra carência que tem sido sistematicamente apontada por empresas e setores empresariais do país.
A segunda área prioritária, a meu ver, seria a da infraestrutura. Nosso país está insuportavelmente atrasado nessa área, a começar pelos portos (escoamento da produção nacional) e aeroportos e as malhas ferroviária e rodoviária. É simplesmente inaceitável que, com o impostômetro rodando em velocidade cada vez mais acelerada, continuemos com a infraestrutura do país nesse estado – inevitável usar aqui esse adjetivo – vergonhoso. A terceira área seria a do saneamento básico, em paralelo com a quarta, a da saúde, uma visceralmente interligada à outra.
E a quinta área prioritária seria a da segurança, com investimento tanto na nossa segurança nacional (controle de fronteiras etc.) como em cascata para os níveis estadual e municipal/local. Aqui, há de se considerar que, com o “contágio” benéfico das melhoras advindas do investimento nas outras áreas prioritárias acima descritas, a grave e insustentável situação atual da falta de segurança para o cidadão melhoraria naturalmente.
“Um país de todos”
Há ainda uma questão a considerar: a da histórica e arraigada corrupção no país. Recentemente, ao ficar mudando de canal, deparei com alguém que eu não conhecia sendo entrevistado no programa Roda Viva, da TV Cultura. E o que ele dizia me chamou a atenção; pensei: “Não deve ser brasileiro, ou, se é brasileiro, deve morar fora do Brasil”, porque ele falava coisas contundentes, coisas verdadeiras a respeito do Brasil, coisas que o brasileiro em geral não fala – nem a imprensa, nem o cidadão –; uma espécie de proibição vedando falar que “o rei está nu”. Continuando a assistir à entrevista, vi que era André Liohn, fotógrafo de guerra premiado internacionalmente; brasileiro nascido em Botucatu, mora há anos na Europa com sua família. E, numa pergunta do fotógrafo Maurício Lima envolvendo a questão da corrupção e impunidade na classe política do Brasil, ele falava da necessidade de uma “revolta social” dos brasileiros – não uma revolta armada, deixava bem claro ele, mas uma revolta no sentido de dizer “eu não estou satisfeito”, uma revolta de insatisfação; e nessa pergunta foram mencionados números: 6 milhões de manifestantes na Parada Gay; Marcha para Jesus: 3 milhões de pessoas; Marcha para (contra) a Corrupção: 2 mil pessoas (e não posso deixar de acrescentar aqui a recente “Marcha das Vadias”, sei lá com quantas pessoas). Em resumo: se, em lugar da Copa do Mundo e das Olimpíadas, investíssemos em nossas prioridades, nas prioridades que melhorassem a vida real, a vida cotidiana dos cidadãos, até a corrupção diminuiria porque teríamos cidadãos mais preparados, críticos e capazes de avaliar os políticos e de votar com mais consciência.
Antevendo críticas, concordo: em se tratando de Brasil, esta é uma visão idealista, polianesca, quase utópica; mas poderia não sê-lo, poderia ser uma visão real e poderia ser, da parte do governo, uma visão estadista. “Um país de todos”, outro querido bordão do governo, seria, na verdade, um país que busca proporcionar uma vida melhor para os seus cidadãos, algo que, hoje, o Brasil está muito longe de oferecer, em todos os sentidos fundamentais.
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[Lenke Peres é tradutora e escritora, Cotia, SP]