Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Encontro com a banalidade do mal

 

O livro Memórias de uma guerra suja foi lido numa madrugada, sem interrupção. A impressão que ficou do relato dos repórteres Rogério Medeiros e Marcelo Netto sobre o matador Cláudio Guerra, ex-delegado do DOPS de Vitória, foi a de um burocrata, matador frio, implacável, algo cínico. Também poderia ser um iluminado pela fé que busca a misericórdia divina.

São as mais tenebrosas confissões da história recente do Brasil. O homem que perpetrou tantos assassinatos e cremou tantos cadáveres de presos políticos, no entanto, afirma: “Sou contra a tortura, nunca torturei”. Executou mais de vinte, ainda não sabe ao certo.

Os autores do livro foram ao programa de TV do Observatório da Imprensa em 22 de maio (ver aqui) e, no estúdio, Rogério Medeiros prometeu uma aproximação com o matador. Na segunda-feira (4/6), num apartamento nos arredores de Vitória, um sujeito atarracado, barrigudo, manso e cujo sotaque mineiro torna sua aparência mais pacata, disse que não tem medo de morrer. Sabe muito mais e contará tudo à Comissão da Verdade.

Contra a distensão

Aos 71 anos, sérios problemas de saúde – diabetes, gota, coração – transpira muito, parece ter falta de ar. No peito, um distintivo com as armas da República sugeria um velho hábito policial. Negativo: é o button da Assembleia de Deus (foi diácono, estudou teologia, agora é pastor). Carrega uma grande bíblia muito manuseada. Conhece as escrituras, mas quando explica o funcionamento da “irmandade” não prega, é um informante. Prático.

Uma força-tarefa do Ministério Público Federal já esteve com ele nos dias 28 e 29 de maio últimos. Com a Polícia Federal visitou três desovas de cadáveres em diferentes estados. Esperava que a imprensa fizesse mais barulho, só ela poderá convencer outros matadores e agentes da repressão a falar. Esta é a sua missão: desenterrar o horror.

Diz isso com simplicidade, sem retórica: atirava para matar, foi treinado para isso, estava a serviço da linha-dura (a “tigrada”), contra a distensão política. Os comunistas precisavam ser exterminados, mesmo sendo contra a luta armada, para convencer o povo que a ditadura era necessária.

Este observador esperava encontrar um Eichmann, burocrata da morte, odioso. Depois de duas horas de conversa esbarrou em Hannah Arendt e a banalidade do mal. Intacta. 

 

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A imprensa quieta

[incluído às 7h17 de 6/6/2012]

A busca da verdade tem uma dinâmica própria. Iniciada, não para. A seriedade com que foi instalada a Comissão da Verdade acionou um mecanismo incontrolável que deve funcionar em todas as esferas.

O ex-delegado do Dops Cláudio Guerra, matador confesso, reconheceu na entrevista que concedeu ao Observatório da Imprensa que esperava da imprensa uma reação mais ativa. Ainda há muita coisa para ser investigada, há muita gente que deseja falar. A mídia “repercutiu” o lançamento do livro dos repórteres Rogério Medeiros e Marcelo Netto, mas ficou nisso. Alguns levaram a sério suas tenebrosas revelações outros duvidaram, o que é absolutamente legítimo.

Ninguém tentou avançar, ir adiante. A imprensa como instituição não se mexeu.

A verdade será mais facilmente encontrada se na busca forem esquecidas as dissensões, rixas, rivalidades, antigas ou novas. A história do Brasil que se está procurando completar pede uma generosa associação de empenhos, generosidade. Pede, sobretudo, um pacto de solidariedade. (Alberto Dines)