Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um pastor manchado de sangue

 

Com uma surpreendente serenidade para dizer ser responsável direta ou indiretamente por cerca de uma centena de mortes, o ex-delegado do DOPS Cláudio Guerra concedeu uma entrevista exclusiva para o Observatório da Imprensa, da TV Brasil, exibido na terça-feira (5/6). Esta é a primeira vez que o ex-matador a mando do Serviço Nacional de Inteligência (SNI) recebe uma equipe de televisão desde que foi lançado Memórias de uma guerra suja, seu relato sobre os crimes que cometeu durante a ditadura militar. Alberto Dines conversou com o ex-policial no Espírito Santo, em um encontro articulado pelos autores do livro, os jornalistas Rogério Medeiros e Marcelo Netto.

Recém-lançado, o livro é um depoimento em primeira pessoa do ex-delegado sobre os 15 anos em que foi agente secreto da repressão. Guerra teria começado eliminar militantes da esquerda em 1973. No livro, ele relata ter informações sobre casos marcantes, como ações da Operação Condor e da Oban (Operação Bandeirantes); o caso Riocentro; o assassinato do jornalista Alexandre von Baumgarten; a morte do delegado Sérgio Fleury, do DOPS, e o assassinato da estilista Zuzu Angel. Em uma das passagens mais fortes do livro, Guerra conta como incinerou corpos de dez presos políticos em uma usina de açúcar em Campos, no Norte Fluminense.

O ex-delegado cumpre pena em regime semiaberto pelo assassinato de um bicheiro. Convertido à Assembleia de Deus, o ex-matador agora quer ajudar as famílias dos desaparecidos políticos a respeito do paradeiro das vítimas. Apesar do teor bombástico das revelações, a repercussão das informações de Guerra, até o momento, foi pequena. Enquanto parte dos especialistas nos anos de chumbo e dos familiares das vítimas acreditam que um conjunto substancial de informações é verdadeiro, e precisa ser checado, outros levantam dúvidas sobre o relato do ex-agente.

A ideologia por trás do crime

Para Alberto Dines, o depoimento de Guerra é uma das confissões mais fortes da história recente do Brasil e a imprensa não teve coragem para explorar o assunto. Dines perguntou ao ex-delegado se, durante os anos em que participou ativamente da repressão, chegou a encontrar razões de caráter espiritual ou moral para perceber a gravidade de suas ações. Guerra garante que não era insensível ao sofrimento de suas vítimas mas, naquela época, encarava a tarefa de aniquilar opositores da ditadura militar como o cumprimento de um dever. A doutrinação contra a esquerda foi intensa e começou ainda muito jovem. “Eu tinha uma ideologia que era completamente contrária ao comunismo. Eu aprendi isso desde criança, que o comunismo era o inimigo”, disse Guerra.

O ex-delegado contou como entrou no “caminho da violência”. Ainda no início da carreira, Guerra foi jurado de morte por um fazendeiro do interior de Minas Gerais, onde atuava naquele período. Por engano, mataram um primo em seu lugar. Para vingar a morte do parente, Guerra pediu a ajuda de coronéis da Polícia Militar. “Com esse favor que eles me prestaram, eu passei a ser devedor”, explicou Guerra. Tempos depois, foi convocado para atuar em uma questão de disputa de terra onde assassinou tanto pistoleiros quanto lideranças camponesas.

“Eu ainda não tinha sido politizado. Nós éramos ignorantes, na realidade. Muitas vezes, saíamos para a missão e não sabíamos quem era [para matar], o que era para fazer. Éramos robôs. Depois é que começamos a participar e a entender. Até então, eu era uma máquina”, explicou Guerra. Treinado pelo Exército em tiro e na produção de explosivos, o ex-delegado Guerra costumava matar suas vítimas com dois disparos certeiros no peito.

Matar vs. torturar

Mesmo sendo um matador contumaz, Guerra garante que não participava de sessões de tortura. O ex-delegado sustenta que aversão a esse tipo de recurso interrogatório era tão grande que sequer entrava nos prédios onde a tortura ocorria. Recebia os cadáveres que deveriam desaparecer no pátio das instituições. Depois de algumas execuções, Guerra sentia-se fisicamente debilitado. Chegou a ser até atendido por médicos, mas mesmo assim não deu fim ao projeto de aniquilação da esquerda no Brasil. “Hoje, se a pessoa quiser me matar vai conseguir porque eu nem uso arma. Sou contra a violência, hoje. Antes, qualquer coisa eu dizia: ‘eu vou resolver!’”, lembrou o ex-agente do DOPS.

Guerra relatou que grandes empresas e artistas simpatizavam com a luta contra o comunismo e contribuíam financeiramente para a causa. Mensalmente, o ex-delegado recebia um bônus pelos trabalhos clandestinos por meio de uma conta no Banco Mercantil, sob o codinome Stanislaw Meirelles. “O povo foi à rua e, no início, queria a revolução [de 1964]. Talvez doutrinados por alguém, mas os militares foram requisitados para fazer isso. Havia o trabalho da CIA por trás influenciando essas manifestações”, disse Guerra.

Censurada, a imprensa dos anos 1970 não pode noticiar os crimes cometidos por Guerra. Quando alguma notícia chegava a ser publicada, era sempre com o viés que os agentes da repressão pretendiam divulgar. Parte dos jornalistas “fazia o jogo” da linha dura e aceitava as versões oficiais sem contestar. O ex-delegado sublinhou que parte das concessões de canais de radiodifusão daquele período foi barganha política pelo apoio ao regime militar.

A guerra que a ainda não acabou

Guerra não estava sozinho na luta. Havia uma comunidade de informações contra a esquerda chamada de “irmandade”. “A gente servia um ao outro. De verdade. Era o mesmo princípio que tem a maçonaria, de você ajudar um ao outro, de ser companheiro no que precisar. Você dá até a vida pelo companheiro, pela causa. E essa irmandade tinha isso. E me preocupa muito até hoje porque ela não acabou. Ela está aí, é ativa. Eu tenho falado isso sempre para as autoridades. Está adormecida, mas está aí”, alertou o ex-delegado. Guerra chamou a atenção para o fato de que há outros agentes secretos que cometeram crimes semelhantes e garantiu que está pronto para revelar os nomes em um possível depoimento à Comissão da Verdade.

Depois do AI-5, decretado em 13 de dezembro de 1968, o endurecimento do regime possibilitou que agentes da repressão atuassem de forma mais intensa. “O que o comandante militar queria, se fazia”, disse Guerra. Outro momento marcante para o serviço de repressão foi a distensão política planejada pelo general-presidente Ernesto Geisel e pelo general Golbery do Couto e Silva. A partir de então, a linha dura intensificou os atentados a bomba para dificultar a transição para a democracia. A maior parte deles era atribuída ao Partido Comunista, que era contrário à luta armada.

“Era essa a maneira de colocar a sociedade brasileira contra a esquerda. Não tinha outra maneira. Era a estratégia deles, inclusive inspirado com o que aconteceu na Argélia. Se espalhou por aqui também. ‘Nós vamos fazer os atentados, o inimigo vai ter que ter sempre’. E nós sempre tínhamos um inimigo para poder [atribuir a culpa]. Acabaram as guerrilhas, fabricou-se um inimigo”, disse Guerra. Ele contou que, em 1975, dois coronéis percorreram vários estados do país para queimar documentos do DOPS. “Foram destruídos todos os arquivos. Só ficou o que não criminalizava ninguém.

Boicote à distensão

O ex-agente do DOPS contou que, na comunidade de informações da qual participava, sabia-se que a morte do jornalista Vladimir Hergoz não havia sido suicídio. Logo após a morte, nos bastidores, já circulava a informação de que o caso era “mais uma burrada, mais um morto sob tortura”. Foi um tiro no pé porque despertou a sociedade para as arbitrariedades do governo. “Nós, que naquela época estávamos lutando para não ter abertura, ficamos na bronca”, disse Guerra.

Havia despreparo dos militares para enfrentar a oposição, na avaliação de Guerra. Ao contrário da polícia, as forças armadas não estavam preparadas para enfrentar a guerrilha urbana e não tinham as táticas corretas para extrair informações sob tortura. Por isso, várias mortes ocorreram nos porões da ditadura. “Eu tenho certeza de que hoje nenhum comandante militar vai permitir que uma pessoa sob sua guarda seja torturada até a morte. E ali eles se excediam, perdiam o controle”.

Mesmo após Geisel iniciar o processo de abertura política, as mortes e execuções continuaram a ser orquestradas. É desse período a incineração de dez corpos de presos políticos na usina Cambahyba. Dines pediu para Guerra confirmar se essas mortes eram um ato de rebeldia contra o processo de distensão. Guerra explicou que a incineração dos corpos foi uma sofisticação necessária. Antes, os cadáveres eram enterrados como indigentes ou com nomes falsos, mas algumas histórias despertavam suspeitas e os corpos reapareciam. Guerra disse que teve a ideia de incinerar os corpos e apresentou o dono da usina aos seus superiores.

Lembranças que não se apagam

Dines perguntou detalhes sobre a morte de Ana Rosa Kucisnky e de Wilson Silva. De acordo com Guerra, a militante de esquerda apresentava várias mordidas humanas pelo corpo e estava muito machucada. A boca sangrava, um sinal de que estaria “estourada” por dentro. Wilson Silva também apresentava sinais de intensa tortura, como as unhas arrancadas e marcas pelo corpo. “Eu me sentia muito mal, muito mais mal [sic] do que nas trocas de tiro. Por isso, hoje tenho um compromisso com as famílias porque o que mais me machucou foram essas cremações”, afirmou o ex-agente. Todos os cadáveres que Guerra recebia estavam seminus porque parte das torturas era localizada nos órgãos genitais. Alguns, com marcas de castração. “São cenas que me deixam muito abalado para narrar”, disse o ex-policial.

Para Guerra, as revelações publicadas no livro deveriam ser investigadas com mais rapidez pela Comissão da Verdade, Ministério Público e Polícia Federal. “Estou falando sobre o que eu participei. Agora, investiguem. Eu estava imaginando que ia ter um trabalho intenso para dar uma resposta aos familiares. Não é para mim, não. A minha resposta eu já tenho de Deus. Mas para os familiares que estão há anos sofrendo pela perda de seus entes queridos. Teriam que isolar imediatamente os locais que eu indiquei. Parece que agora que vão fazer isso”, disse Guerra. O ex-delegado ressaltou que não está pedindo perdão aos familiares das vítimas que assassinou e que está pronto para responder criminalmente pelos seus atos.

“Eu não tenho que esconder nada. Hoje, meu compromisso é com Deus. Se eu vou passar mais anos na cadeia, nada disso importa. A minha finalidade de vida hoje é ajudar à busca da verdade”, disse. Dines perguntou se, na opinião de Guerra, outros agentes da repressão que ainda estão vivos encontrarão formas de se apresentar à sociedade. O ex-delegado argumentou que está convencido de que outros agentes estão dispostos a colaborar e aproveitou para fazer um apelo aos “companheiros” com quem trabalhou para que não tenham medo da verdade e confessem seus atos criminosos.

Anistia para todos?

Guerra criticou a discussão em torno da punição de crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura militar: “Eu já tinha conseguido fazer contato com algumas pessoas e elas estavam dispostas a colaborar. Mas eles estão com medo agora por causa dessa espada que ficaria sobre a cabeça deles”, disse o ex-policial. Guerra ponderou que se teve coragem de assassinar opositores do regime militar no passado, agora é preciso ainda mais coragem para revelar a verdade.

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Memórias de uma guerra sujaObservatório da TV (22/5/2012)

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[Lilia Diniz é jornalista]