Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O diabo da regulação

 

O escândalo que envolve o senador Demóstenes Torres e outras autoridades com o bicheiro Carlos Augusto Ramos, conhecido como Carlinhos Cachoeira, é o ponto de motivação para um documento que, segundo a imprensa, foi encaminhado à presidente Dilma Rousseff pelo diretório do Partido dos Trabalhadores em São Paulo.

No texto, os representantes do partido que comanda a bancada situacionista no governo federal pedem que a presidente da República acelere a preparação de um decreto sobre o marco regulatório da mídia no Brasil.

A iniciativa mexe com um vespeiro que define claramente as duas principais forças políticas do Brasil: numa delas está o partido governista; na outra, atuando com características de partido político, alinham-se os representantes das mais tradicionais casas de comunicação do país.

Nesse cenário de guerra, não há possibilidade de progredir qualquer iniciativa no sentido de reorganizar o setor de mídia, nem mesmo naquelas áreas em que, por força de concessões públicas, o governo é obrigado a criar e fazer cumprir normas de funcionamento.

Autorregulação intuitiva

Segundo o noticiário, o governo prepara há meses um conjunto de regras que tende a tornar mais rigoroso o sistema de concessões de radiodifusão, completamente distorcido pela existência de monopólios regionais, propriedades cruzadas e controle explícito ou dissimulado por parte de pessoas com cargos eletivos.

Além disso, é intenção declarada do governo aumentar a proporção de conteúdos nacionais e regionais na mídia eletrônica e eliminar do sistema a figura dos “laranjas” – prepostos que emprestam seus nomes a políticos como controladores fictícios de emissoras.

Na semana passada, os jornais provocaram um princípio de crise entre o governo e parte de sua base aliada, ao noticiar que o projeto de marco regulatório iria proibir o aluguel de horários na TV e no rádio.

Os protestos de representantes de organizações evangélicas mostraram que as dificuldades em colocar alguma ordem no sistema nacional de radiodifusão incluem questões que vão muito além do problema específico que a legislação precisa solucionar: qualquer que seja o governante, a bancada parlamentar que se vale da pregação religiosa será sempre um poder político a se considerado – o que reduz em muito as chances de uma abordagem racional a muitas questões que precisam ser discutidas nos foros da República.

Mas ao levantar as orelhas ante qualquer referência aos propósitos de regular a mídia, a imprensa não está preocupada especificamente com os interesses dos evangélicos ou de qualquer grupo particular de cidadãos. O que ocupa basicamente a mídia são os interesses corporativos da própria mídia, que sempre se considerou capaz de resolver sozinha qualquer pendência em suas relações com a sociedade – o que produz uma rejeição automática a qualquer tentativa de atuação do poder público em seu campo de negócio.

Para a imprensa, a mídia tem racionalidade suficiente para se autorregular intuitivamente, sem que as regras estejam escritas. O que diz o Partido dos Trabalhadores na moção dirigida à presidente da República é exatamente o contrário: que a mídia não merece a confiança da sociedade e precisa ter sua atividade regulamentada.

A fuga da razão

No texto aprovado pelo diretório de São Paulo, o partido da presidente Dilma afirma que a imprensa não merece confiança e cita o escândalo Demóstenes-Cachoeira como argumento principal.

“Os últimos fatos evidenciam a associação de um setor da mídia com a organização criminosa da dupla Cachoeira-Demóstenes, a comprovar a urgência de uma regulação que, preservada a liberdade de imprensa e a livre expressão do pensamento, amplie o direito social à informação”, diz um trecho da nota.

Mas nem mesmo a referência explícita e destacada à necessidade de preservar a liberdade de imprensa e a livre expressão do pensamento é suficiente para acalmar os ânimos. Para a imprensa, qualquer sugestão externa soa como interferência indevida em suas atividades.

A citação do caso que envolve um senador oposicionista que foi porta-voz preferencial da imprensa em campanhas contra o governo é um elemento complicador.

Pressionada pelo crescimento avassalador das mídias digitais, a imprensa tradicional tarda em encontrar um modelo de negócio que assegure sua hegemonia.

A regulação poderia se transformar até mesmo em uma oportunidade para enfrentar esse desafio, mas a razão há muito se escafedeu desse debate.