O jornalismo se estrutura como negócio e se legitima como serviço público. Esta frase, que sintetiza um pensamento de Francisco Karam e vem sendo trabalhada pelo autor em discussões acadêmicas, nos faz refletir que o exercício do jornalismo se manifesta, se materializa, por meio do jornal, uma instituição privada, mas não uma instituição cuja ordem do privado se dá do início ao fim do processo, dentro de uma visão puramente mercadológica. O compromisso com o público é explícito e renovado dia após dia, nas páginas dos jornais, nos portais de notícias, nos telejornais. E é aí que se inicia a complexidade do jornalismo.
Como ser uma instituição privada com compromisso com o público? Mais: como se dá esse comprometimento, como ele se legitima? Trazendo assuntos de interesse público ou os de interesse “do” público? Ou, quem sabe, ambos, pois assim o círculo mercadológico se fecha e, ao considerar o público como consumidor da mercadoria jornal, o jornalismo cumpre o papel de agradar aos diferentes perfis de consumidores.
Em tempos de “infotenimento”, neologismo que se compõe a partir da fusão dos termos informação e entretenimento, ser jornalista é quase sempre ser capaz de trazer o entretenimento como valor-notícia fundamental ao acontecimento. Exigência que deixa a linha limítrofe entre interesse público e interesse do público cada vez mais difusa.
A ética e mercado
Os óculos metaforizados por Bourdieu para classificar os valores-notícia precisam ganhar lentes cada vez mais coloridas a fim de chamar atenção do público. Leonel Azevedo de Aguiar diz que o sensacionalismo se transformou em uma estratégia eficiente de comunicação para fascinar e seduzir o público. O autor é partidário da utilização da informação jornalística a partir do viés das sensações e das experiências do leitor, como se essa premissa estivesse arraigada ao processo produtivo da notícia.
Outros autores, como Virginia Fonseca, preferem dizer que os critérios de noticiabilidade das novas organizações multimídia continuam passando pelo interesse público, porém com olhares muito mais voltados à prestação de serviços e ao entretenimento. O jornalismo de serviço, que Marques de Melo chama de utilitário, é, na verdade, a velha e tradicional proposta de auxiliar o cidadão com informações práticas do dia-a-dia – horários de cinema, funcionamento de serviços públicos, previsão do tempo. Assuntos que se configuram, sim, como de interesse público. O entretenimento, por outro lado, coloca o exercício do jornalismo em uma berlinda.
Luiz Beltrão diz que o objetivo do jornalismo não deve ser apenas dar o que o público quer ler, mas tudo aquilo que, a partir da análise dos acontecimentos, é importante que ele conheça. Aí é que entram os conflitos éticos do jornalismo com as proposições puramente mercadológicas. O que é importante que o cidadão leitor do jornal saiba é, de fato, o que ele quer ler? Não seria mais fácil – e talvez por isso seja mais frequentemente adotado por muitos veículos – seduzir o público leitor com informações atraentes, fáceis de vender? Uma terceira vertente seria unir o sedutor ao importante do ponto de vista político-social-econômico.
O jornalista e a empresa
Exemplos recentes de temas tratados na mídia nos dão munição para essa reflexão. A Xuxa contar, em entrevista ao programa de maior audiência da TV aberta, no domingo à noite, já ter sofrido abuso sexual quando criança, é ou não é assunto de interesse público? Que é de interesse do público, não resta dúvida, se considerarmos a apresentadora como um dos maiores ícones de diferentes gerações e, sobretudo, se levarmos em conta o quanto o assunto repercutiu, em diferentes mídias, ao longo da semana que sucedeu à entrevista. A vida privada de Xuxa não teria interesse público no sentido de ser acontecimento relevante para a vida dos cidadãos. Porém, justo por ser a Xuxa uma figura que exerce forte influência sobre muitos brasileiros, uma declaração como a de ter sido abusada sexualmente na infância pode servir de alerta a pais e cuidadores de crianças. Pode servir também de impulso para meninos e meninas vítimas de violência trocarem o silêncio pela denúncia. Ou seja, por meio de um assunto de interesse do público, chegamos a um tema de interesse público: a violência infantil.
Outro tema semelhante foi a publicação indevida de fotos da atriz Carolina Dieckmann na internet. O assunto seria absolutamente sem interesse público não fosse o fato de que a vulnerabilidade envolvendo o uso de tecnologias atinge, potencialmente, todos os cidadãos que fazem uso de computadores, celulares e outros recursos tecnológicos com acesso à internet. O que se viu, no entanto, em muitas publicações, foi o foco na singularidade do fato de que uma atriz fotografou a si mesma nua e as fotos foram usadas de forma indevida, caindo em domínio público. A entrevista que Carolina Dieckmann concedeu ao Jornal Nacional, da Rede Globo, por exemplo, foi focada no sensacional, no singular.
As nuanças não só da veiculação como também da forma de abordagem de assuntos envolvendo, sobretudo, celebridades, dizem muito do momento ético que vivemos na imprensa. O código de ética do jornalismo é próprio do jornalismo, não de outras profissões. E é também, em parte, diferente do código das pessoas comuns, como ressalta Bertrand Russell. Com isso, queremos dizer que o compromisso da ética jornalística é do jornalista e da empresa jornalística. O desconhecimento do público não justifica o descuido do profissional com essa que pode ser tomada como premissa básica do ato de informar.
Referências
AGUIAR, Leonel Azevedo de. Entretenimento: valor-notícia fundamental. Estudos em Jornalismo e Mídia, Florianópolis, ano V, nº 1 p. 13-23, jan./ jun. 2008. Disponível em: <http://www.revistas.univerciencia.org/index.php/estudos/article/viewArticle/5556>. Acesso em: 30 maio 2012.
Beltrão. Luiz. A imprensa informativa: técnica da notícia e da reportagem no jornal diário. São Paulo: Folco Masucci, 1969.
BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
FONSECA, Virginia Pradelina da Silveira. O jornalismo nos conglomerados globais: prestação de serviços e entretenimento. E-compós: Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação. n. 2, abr. 2005. Disponível em: HTTP://www.compos.org.br/seer/index.php/e-compos/article/view/32/33. Acesso em: 26 maio 2012.
MARQUES DE MELO, José; ASSIS, Francisco de (orgs.). Gêneros Jornalísticos no Brasil. São Bernardo do Campo: UMESP, 2010.
Russell, Bertrand. Ética e Política na sociedade humana. Tradução de Oswaldo de Araújo Souza. [S.I.]: Cia Editora Nacional: 1956.
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[Ana Paula Bandeira é jornalista, Florianópolis, SC]