Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O caso do empresário esquartejado

A morte do empresário Mario Matsunaga foi, ao que tudo indica, rapidamente esclarecida logo depois que sua mulher foi presa e confessou a autoria do crime. Certo noticiário tenderá agora a revolver os mistérios da alma humana ao explorar detalhes mórbidos do episódio: afinal não é um crime qualquer, é um crime passional em que a mulher não apenas mata, mas esquarteja o marido após aguardar o tempo suficiente para que os cortes não provocassem tanta sangueira, enquanto sua filhinha de 1 ano dormia alheia a tudo, e na manhã seguinte sai para se desvencilhar do corpo despedaçado distribuído em três malas de viagem.

Há mais detalhes típicos de folhetins: a mulher havia sido garota de programa e encontrara o futuro marido nesses contatos via internet, era extremamente ciumenta e havia posto um detetive atrás dele para comprovar um caso extraconjugal; a mãe está se tratando de um câncer e não compreende o comportamento da filha.

Intimidades de família, segredos de alcova, cenas exclusivas da traição, tudo isso garante audiência ao gosto do voyeurismo do público e fornece farto material para os programas de sempre, com o convite a “especialistas” também sempre dispostos a opinar sobre motivações e mesmo sobre a maneira pela qual as “mentes assassinas”, que rendem óbvios best-sellers, costumam agir.

Mas isso é o que menos importa.

A descoberta do arsenal

Durante a reconstituição do crime, uma descoberta particularmente chocante foi noticiada como se fosse a coisa mais banal do mundo: o arsenal encontrado pela polícia no apartamento do empresário. Trinta armas, entre as quais fuzis e submetralhadoras, e caixas de munição com cerca de 10 mil projéteis.

Não se informou quanto tempo a polícia teve entre esse achado e a investigação que permitiria ao delegado afirmar, categoricamente, que as armas estavam “todas legalizadas, todas regulamentadas e todas autorizadas para uso de colecionador”. O fato mereceu apenas registro nos jornais.

Colecionadores têm entre si esse traço comum da obsessão por determinado objeto, conforme não apenas o gosto mas a condição financeira: podem ser latinhas ou rótulos de cerveja, camisas de times de futebol, soldadinhos de chumbo, selos, livros raros, obras de arte. Ou mesmo armas, mas nesse caso imaginamos sempre – talvez ingenuamente – o fascínio por exemplares antigos, que marcaram época, desde garruchas e mosquetões até modelos utilizados em guerras, mas já fora de circulação. Tudo para ser classificado e guardado com apuro em armários envidraçados, para exibir orgulhosamente aos amigos.

Coisa de colecionador?

De repente, somos surpreendidos com a descoberta do arsenal – parte do qual de “uso restrito das Forças Armadas”, como noticiou a Folha de S.Paulo na sexta-feira (8/6) – e a justificativa do delegado. A quem aparentemente estranhou, ele respondeu: “Ele [o empresário morto] era atirador, ele gostava. É um hobby. Se você pegar, outros colecionadores devem ter muito mais que isso”.

Que uso um colecionador de armas está autorizado a fazer de sua coleção? Onde se pode imaginar que um atirador vá praticar suas habilidades com uma submetralhadora? Colecionadores podem colecionar armas de uso exclusivo das Forças Armadas? Podem colecionar também munição? Dez mil projéteis não serão um número excessivo, em qualquer caso?

Salvo engano, a única reportagem que se deteve minimamente sobre essa história foi a do Jornal Nacional de sábado (9/6), ainda assim centrada no alerta para o número excessivo de armas – quase 155 mil – legalmente nas mãos de “colecionadores, atiradores esportivos ou caçadores”. Nenhum questionamento sobre o que faria este empresário com tão variado material em casa.

Perguntas que faltaram

Na edição de sexta-feira (8), a Folha de S.Paulo reproduziu reportagem do Agora informando que o empresário havia transformado um dos banheiros do imóvel em “cofre” onde estocava o arsenal. Ao mesmo tempo, dizia que “parte das carabinas, fuzis, submetralhadoras e outras pistolas estava espalhada por outros cômodos do apartamento de quase 300 m² do casal”, porque o empresário “temia um arrastão no prédio onde morava”.

Portanto, as armas seriam utilizadas em caso de assalto. Por isso, aliás, ele e a mulher haviam feito curso de tiro, seriam exímios atiradores.

Podemos imaginar então a cena de um ataque ao apartamento duplex naquele belo condomínio vertical paulistano e o casal de colecionadores se movimentando cinematograficamente de um lado para outro, manuseando alternadamente as 30 armas e despejando seus 10 mil projéteis contra os malfeitores, no melhor estilo dos filmes de gângster. Dois contra uma cidade inteira?

Não caberia perguntar, afinal, o que tanto temia o empresário? Que interesses, atividades e relações poderia ter além de seu trabalho como diretor-executivo de uma fábrica de alimentos, aliás negociada com uma poderosa multinacional americana justamente na semana em que ele, já morto, era dado como desaparecido?

O Fantástico de domingo (10/6) fez ampla reportagem centrada na mulher que confessou o crime, e tratou também dos hábitos do casal. Ficamos sabendo que o empresário também era amante de vinhos, tinha essa outra “coleção” e pretendia investir no negócio.

Sobre armas, apenas o registro já conhecido, além da surpresa de uma das empregadas, entrevistada sem ser identificada, diante da descoberta de uma pálida amostra do que havia no apartamento, durante uma limpeza.

Contra a ignorância

Jornalismo, por definição, é feito para ignorantes. Não se trata, como pode parecer a princípio, de uma frase de efeito: ignoramos os fatos que ocorrem fora de nosso círculo de relações, ainda que este círculo tenha sido ampliado com a disseminação do acesso à tecnologia digital. Por isso precisamos do jornalismo: para que nos dê informação confiável.

Por isso repórteres precisam se colocar no lugar do público ignorante e fazer as perguntas que possam esclarecê-lo, e não dar de barato que tudo se resolve com as declarações das fontes, sobretudo quando elas são evidentemente insuficientes para a compreensão dos fatos.

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[Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)]