Mais conhecido por sua teoria da Separação dos Poderes, um legado para a constituição de vários Estado modernos, Charles de Montesquieu (1689-1755) também se interessou – tardiamente, é verdade – pelas propriedades do “gosto”. E ele mesmo se lamenta dessa atenção tardia. “Censuro-me a mim mesmo por ter-me recusado, até a idade de 35 anos, o prazer que é ver uma bela pintura e uma bela fachada”, escreveu.
Foi tamanha a impressão que “o gosto” causou nele que, ao ser convidado a escrever verbetes sobre a Democracia e o Despotismo para a Encyclopédie, de D’Alembert e Diderot, ele recusa a demanda, mas sugere uma outra: um verbete sobre o Gosto. Acatada a sugestão, ele então passa a tecer diversas observações sobre o tema. Mesmo inacabado, devido à morte do autor, o verbete nem por isso deixou de ser publicado.
Tradutor de O Gosto (Ed. Iluminuras), de Montesquieu, o professor e crítico Teixeira Coelho ajuda a decifrar qual seria esse “gosto”, de acordo com o pensador francês, aproveitando para situar algumas de suas análises no tempo presente, discutindo-as sob a perspectiva do turismo de massa e do jornalismo cultural.
Gosto e prazer
Um dos grandes méritos de Montesquieu foi o de ser o primeiro a associar o gosto ao prazer, revela Coelho. Uma associação especialmente importante se levarmos em conta que na época, meados do século XVIII, o assunto estava sofrendo uma academização mediante o crescente interesse por estudos mais formais sobre o tema oriundos do campo da estética.
Na contramão desse movimento, o objetivo de Montesquieu era perceber como o gosto leva ao prazer, à consciência desse sentimento e, finalmente, à felicidade. Assim, para além de aspectos externos, como a identificação que a obra proporciona, o seu poder de integração social, de identidade nacional, de classe ou de gênero, era o prazer proporcionado pelo gosto que pairaria acima de tudo.
Tal abordagem é especialmente interessante, segundo Coelho, se formos pensá-la tendo em vista o mundo moderno. “Há tão poucas ocasiões para um real prazer no mundo burocratizado, formatado, controlado, vigiado, uniformizado, censurado e autocensurado de hoje, que essa contribuição pode ser considerada fundamental.”
E para Montesquieu, a uniformidade era um dos principais inimigos do gosto. “Uma uniformidade prolongada”, ressalta, “torna tudo insuportável”. Assim, por meio dessas observações, ele opta por dar certa estrutura ao gosto, tentando dimensioná-lo ao apontar características físicas (ordem, simetria, variedade, contrastes) que dariam ao objeto apreciado um aspecto mais ou menos prazeroso, fazendo-o mais capaz ou incapaz de instigar o gosto do observador.
Para ele, gosto nada mais era “senão a vantagem de descobrir com sutileza e presteza a medida do prazer que cada coisa deve dar às pessoas”. Quanto mais a alma fosse cultivada, seja por meio de viagens ou através da própria experiência de vida, mais uma pessoa possuiria a capacidade de apurar seu discernimento de tal medida, afinando, assim, o seu gosto.
O gosto pela viagem (turismo de massa)
Uma maneira de se refinar o gosto seria viajando. O próprio Montesquieu teve desvelada para si a questão do gosto quando se percebeu submerso em outra cultura, permeado por outros hábitos. Foi numa viagem à Itália, ao ver pela primeira vez o legado grandioso deixado pelo Renascimento, que ele alça “o gosto” como um tópico essencial a ser estudado. Sobre essa experiência, ele revela uma mudança de percepção do modo como enxerga as coisas, chegando a dizer que voltaria a Paris só para vê-la novamente, agora, com outro olhar.
Mas será que hoje, com a facilidade de mobilidade, o gosto das pessoas estaria sendo moldado segundo alguns preceitos de Montesquieu?
A essa questão, Teixeira Coelho responde: “O turismo de massa tal como praticado hoje, sobretudo no Brasil, não tem nenhuma capacidade de influir no depuramento do gosto das pessoas. Zero. Nada. Coisa alguma. O turismo se serve da cultura e da arte hoje, sobretudo no Brasil, para justificar-se a si mesma como atividade econômica exploratória da criatividade alheia.”
O papel do jornalismo cultural
O mesmo caminho do turismo segue o jornalismo que, por sua vez, tampouco é capaz de nos ajudar nessa missão. Mesmo dizendo-se avesso ao relativismo cultural e à ideologia populista, segundo a qual tudo em cultura vale a mesma coisa (“o que faz uma canção popular ser tão valiosa quanto uma composição de Beethoven, por exemplo”), Coelho acredita que o papel do jornalismo cultural não é determinar essas diferenças:
“Em nome de que gosto o jornalista cultural está falando? E em nome do quê ele acredita ter a missão de ‘determinar’ o gosto de uma pessoa? Quer dizer, todo jornalista cultural irá falar em nome dos valores que tem e que ele julga serem os mais indicados, os melhores, os mais elevados. Mesmo que suponhamos que o jornalista fale em nome de valores elevados, ele deverá divulgar sua análise para os outros com o propósito de que os outros façam com ela o que bem quiserem, não para determinar-lhes seu gosto. As ditaduras, de direita e esquerda sempre estão interessadas em determinar o gosto dos outros. Mas, em condições normais, jornalismo cultural não é e não deve ser uma variante da ditadura.”
O papel do jornalismo cultural deveria, portanto, estar mais ligado à análise crítica ou à curadoria, embora Coelho acredite que não há espaço para isso e nem gente qualificada para tanto. De acordo com o professor, “a maior parte do jornalismo cultural, sobretudo em jornais impressos, não é nem curatorial, nem crítico: simplesmente se limita a descrever um objeto (por exemplo, uma montagem teatral) e não raro informa mal o leitor sobre o que está em jogo. O que fazem é ‘serviço cultural’, nada mais. Nem os jornais e demais veículos no Brasil, com raras exceções, abrem espaço para uma verdadeira critica (que necessita de espaços generosos, pois nem tudo pode ser dito com fundamento em 1.500 caracteres ou em 60 segundos). Também não existe público para a crítica (a audiência dos textos ou falas críticos no Brasil é ínfima); nem a maior parte dos jornalistas culturais está de fato preparada para a tarefa.”
Curadoria e crítica
Ainda no universo cultural de hoje, seja pelo crescente apoio às manifestações artísticas ou à mercantilização cada vez maior da obra de arte, a palavra “curadoria” está em evidência. Mas qual a real especificidade de uma curadoria, e qual a sua diferença em relação à atividade crítica?
De acordo com Coelho, a curadoria é uma critica enviesada. “Com isso,eu quero dizer que normalmente ela adere totalmente a seu objeto de modo a apresentá-lo sob uma luz que justifique a organização da mostra, do concerto correspondente etc. Ela é pouco opinativa e pouco crítica, salvo no aspecto de que faz uma crítica positiva de seu objeto exatamente ao escolhê-lo como tal. Já a crítica, em seu sentido tradicional, costumava ser mais comparativa, portanto mais opinativa, mais livre para apontar os pontos altos e os pontos menos altos de uma exposição, da obra de um artista, de uma ópera…”
Gosto: universal ou datado?
Ao relacionar o gosto ao prazer proporcionado, e à consciência desse prazer, Montesquieu, de certa forma, quebra suas fronteiras, almejando encontrar uma medida universal para esse prazer. Assim, ele apresenta critérios de sua época para se identificar as composições que dão mais ou menos prazer à alma. Porém, mais que as disposições que enumera, é o prazer (algo subjetivo) que está em evidência. Assim, o pensador francês equilibrou, em suas análises, o universal com o que parece ser datado.
A partir da academização do “gosto” esse aspecto mais subjetivo-universal, que teria o prazer como medida, parece ter ficado em segundo plano, fazendo com que se prevaleça o seu caráter efêmero, tornando-o compreensivo somente mediante sua respectiva época histórica.
Nesse sentido, o “bom gosto” e o “mau gosto” estariam espelhadoa, por exemplo,na segregação de classes; já o “gosto de cada um” teria como espelho o isolamento do homem moderno, sendo que o mesmo objeto relacionado à estética seria fruto de sua “academização”. Sobre isso, Coelho observa:
“O gosto é tudo isso, e nada disso o desmerece ou desqualifica: é datado, só faz sentido numa dada época histórica, é de classe, é individual, é acadêmico. Em sentido amplo, não existe um gosto geral, universal. Não por enquanto. Ainda bem: estamos num mundo ainda marcado pela diversidade e isso é que o torna interessante. Não quer dizer que um dado modo do gosto não possa apresentar-se como transhistórico, com ou sem razão. Por exemplo, o paradigma grego em escultura e arquitetura ainda é um padrão de gosto para largas partes do mundo, e um padrão de gosto que atravessa várias classes sociais. Nem por isso é melhor ou mais conveniente.”
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[Duda Fonseca é jornalista]