Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Imprensa como associação editorial

Alguns representantes da imprensa brasileira atuam, em certas circunstâncias históricas, como uma associação com fins políticos. Duas formas de associação editorial com fins políticos são percebidas na imprensa próxima ao modelo liberal. O cerco ao jornal Última Hora e ao governo Vargas montado em 1953 pela Tribuna da Imprensa, O Globo eRádio Globo, O Jornal e TV Tupi são exemplos de uma associação editorial informal. Assim também são compreendidas as atuações de diversos representantes da imprensa voltados para desestabilizar o governo Lula (2003-2010) e conter a candidatura Dilma nas eleições presidenciais de 2010. Já a Rede da Democracia, criada em 1963 para pedir a intervenção militar no governo Goulart, é um exemplo de associação editorial formal constituída por centenas de emissoras do país, sobretudo pelas rádios Tupi, Globo e Jornal do Brasil, além dos jornais O Globo, O Jornal e Jornal do Brasil.

As associações editoriais com fins políticos ocorreram em circunstâncias de desconfiança dos governos que contavam com forte apoio popular. A desconfiança política e a formação de associações no âmbito da imprensa surgiram antes mesmo desses governos se constituírem, já que eram identificados com programas em defesa dos interesses populares. Foram os casos da contestação à vitória de Vargas em 1951, da tentativa de golpe para impedir a ascensão de Goulart à presidência em 1961 e da disposição para enquadrar a campanha eleitoral de Lula em 2002. Os três personagens viam no fortalecimento do Estado o caminho para superar os entraves ao desenvolvimento nacional. Eles simbolizavam no imaginário popular os compromissos com os ideais de igualdade e justiça social. O mesmo pode ser observado com relação à candidata Dilma, que se apresentou nas eleições de 2010 como continuidade do programa de governo de Lula.

Questionamento da legitimidade

As associações editoriais com fins políticos surgiram quando houve uma percepção de risco ao desenvolvimento das instituições da democracia representativa e aos valores liberais que dão substância à prática jornalística, sobretudo à prática da liberdade de imprensa e o intocável direito de propriedade. Nos governos Vargas e João Goulart não havia censura à imprensa, mas os governos foram submetidos a amplas campanhas em favor da liberdade de imprensa. É um paradoxo, pois a existência de uma campanha indica que havia liberdade para realizá-la. Então, o que estava em jogo não era a liberdade de imprensa, mas a questão da propriedade privada, ameaçada na visão liberal pela possibilidade de intervenção do Estado nos destinos dos diversos setores da sociedade, incluindo as empresas jornalísticas. O governo Lula teve menos comprometimento com o questionamento da propriedade privada do que o governo Goulart, mas também esteve sob intenso ataque de representantes da imprensa que se viam ameaçados em sua liberdade diante da proposta de controle social da mídia, cujos debates também envolveram a candidata Dilma na campanha das eleições presidenciais de 2010.

A autonomia para promover campanhas pela liberdade de imprensa se desdobrou na autonomia para definir o papel da própria imprensa no sistema político. A campanha pela liberdade de imprensa é um eixo discursivo dos jornais com o objetivo de enfatizar a concepção publicista da opinião pública em detrimento da concepção institucional. A imprensa se coloca como canal principal de manifestação da opinião pública em detrimento do Legislativo e das escolhas populares pelo voto. Argumento que a imprensa não age como partido político, mas disputa com os partidos a hegemonia sobre a representação da opinião pública. Ela pode compartilhar valores e assumir posições partidárias, mas no processo competitivo da democracia adquire uma visão própria do seu papel. Na crise política que desaguou no golpe de 1964, os jornais cariocas da Rede da Democracia, O Globo, O Jornal e Jornal do Brasil, atribuíram à própria imprensa o papel de autêntica representante da opinião pública, com base na percepção de que o Congresso estava paralisado e não agia para conter as propostas de reformas do Executivo que ameaçavam a propriedade privada como a reforma agrária.

No governo Vargas, os debates promovidos pelos jornais cariocas em torno da CPI da Última Hora, focando o tema da opinião pública e a sua condição de existência, a liberdade de imprensa, ocorreram lado a lado com o questionamento da legitimidade do governo, bem como da prática da representação política, envolvendo os partidos e os sindicatos dos trabalhadores.

Imprensa como representante da opinião pública

De fato, nos governos Vargas e Goulart houve um intenso agendamento do tema da representação da opinião pública e da valorização da imprensa como seu canal privilegiado de expressão. Ao mesmo tempo, a crítica jornalística foi acompanhada pela crescente desconfiança dos políticos e da representação política. O mesmo ocorreu no governo de Lula. Houve uma disputa pela representação da opinião pública entre representantes da imprensa e instituições políticas, manifestada nas campanhas em favor da liberdade de imprensa e na desqualificação da representação política. Jornais como O Globo, O Estado de S. Paulo e a Folha de S.Paulo e revistas como a Veja encontraram no presidente um alvo preferencial. Construíram a imagem do governo Lula associada à corrupção e divulgaram críticas com nítido caráter ideológico, com base na ideia de que crenças, projetos e ações do governo e do PT se alinhavam às práticas da velha esquerda autoritária.

Além de estigmatizarem a figura de Lula, as argumentações sugeriam que as decisões do governo derivavam de concepções de mundo atrasadas, derrotadas historicamente. Na campanha presidencial de 2010, entre as muitas ironias, Lula foi considerado pelo jornal O Globo como uma encarnação do “espírito do Rei Sol, um Luiz XIV tropicalizado”, uma reedição de um “pai dos pobres de figurino getulista”, além de ser acusado de utilizar uma linguagem de cabo eleitoral da candidata Dilma, o que não se coadunaria com o papel constitucional de um presidente.

Há, portanto, um padrão discursivo encontrado nesses casos de associações editoriais com fins políticos que são formadas pelos representantes liberais da imprensa: elas valorizam a concepção publicista em detrimento da concepção institucional da opinião pública. Desqualificam a representação política e ao mesmo tempo valorizam a própria imprensa como autêntica representante da opinião pública, porque esta seria mais comprometida com os tradicionais valores da sociedade brasileira, manifestados na defesa incondicional de uma economia de mercado que tem no direito de propriedade e na liberdade do indivíduo os seus eixos fundamentais.

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[Aloysio Castelo de Carvalho é professor da Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, RJ]