Como ser contrário às tentativas de um país de saber mais sobre seu passado, algo que tem começado no Brasil, apesar dos inúmeros percalços, a partir das comissões nacionais, estaduais e municipais da verdade? Como é possível se opor a esta iniciativa, sob o falacioso argumento de uma “revanche” de setores de esquerda que teriam sido derrotados durante a ditadura militar que infelicitou este país durante 21 anos? A não ser que seja parte ameaçada, ao menos em termos, pelas revelações, fica difícil explicar por que alguém se opõe a que nós, brasileiros, tenhamos acesso ao conhecimento de detalhes de nossa história que, mesmo após mais de 25 anos do fim da ditadura, permanecem obscuros. Quem poderia se sentir ameaçado pela verdade?
A breve introdução serve para lembrar que, mesmo ainda no início do trabalho da Comissão da Verdade nacional e de suas congêneres estaduais – no caso paulista, comandada pelo deputado Adriano Diogo (PT) – e municipais começam a surgir revelações que serão, sem dúvida, muito importantes para a história do Brasil e da imprensa brasileira. Basta ler com atenção alguns livros recém-lançados para que tenhamos informações que ainda não haviam aparecido e, graças à pertinácia e até mesmo à sorte de alguns jornalistas (bons repórteres, como se sabe, também precisam ter sorte) começam a ser reveladas, trazendo um pouco mais de luzes a um passado sombrio da história do Brasil.
“O governo atribuiu o atentado à esquerda”
Vejamos, por exemplo, o que afirma o delegado Claudio Guerra, integrante dos órgãos de repressão durante o regime militar e assassino confesso de vários presos políticos, em depoimento aos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros na página 165 do livro recém-lançado Memórias de uma guerra suja (Ed. Topbooks):
“(…) Um dos jornais mais críticos ao sistema era O Estado de S.Paulo. Perdigão e Vieira queriam fazer um atentado lá, para chamar atenção, fazer barulho, mas sem vítimas.
Eu mesmo idealizei tudo. A bomba seria colocada do lado de fora do prédio do jornal, assim eu teria mais controle para não atingir ninguém. Foi no dia 14 de novembro de 1983. Pedi a um mecânico de primeira do Espírito Santo, Paulo César Bessa, que montasse um carro para mim, de modo que fosse impossível rastrear sua origem. O Bessa era muito conhecido como receptador de carros, não só no Espírito Santo, como também no Rio de Janeiro. Ele montou um Voyage: o chassi era de um automóvel, o motor de outro, um monte de peças misturadas. Deu certo. Até hoje não há a identificação do carro. A sua oficina, que era mais um desmanche do que uma oficina propriamente dita, ficava em Vitória, ao lado da delegacia de Polícia Civil. Peguei o carro com ele e o levei, sozinho, de Vitória até São Paulo.
(…) Todo o explosivo de que eu precisava para a ação já estava disponível: eu havia recebido o material na sauna ao lado do Angu do Gomes. Montei a bomba com um despertador como gatilho, guardei no porta-malas do carro e fui para o estacionamento do jornal O Estado de S.Paulo. Parei o Voyage com a traseira virada para o prédio. O professor me orientou especificamente nesse caso para aumentar a potência da bomba. Usei um botijão de gás, um quilo de C4 na boca do botijão, e coloquei uma espoleta elétrica para funcionar como descarga do positivo com o negativo. Quando estes se encontrassem, fechariam os dois pontos, o positivo e o negativo. Os ponteiros acionariam a espoleta e a descarga elétrica faria a espoleta explodir o C4.
O prédio do jornal era grande. Ao lado, havia um viaduto na Marginal, onde eu fiquei esperando o momento da explosão. Saiu foto na edição do Estadão no dia seguinte ao atentado. Outro jornal de São Paulo publicou uma foto mostrando a altura do fogo.
Tive o cuidado de preparar a bomba com o mesmo tipo de explosivo que o pessoal de Cuba usava, mas era para ficar caracterizado que a autoria era da esquerda. Ao parar o carro no estacionamento do jornal, eu e a agente Tânia saímos abraçados, como se fôssemos namorados. Entramos num carro da prefeitura de São Paulo que nos dava cobertura, guiado por um parceiro de Tânia. Fomos para o viaduto e de lá ficamos observando para se ver se alguém encostaria no carro. Ninguém apareceu. Aí aconteceu a explosão, foi aquele fogaréu. O governo atribuiu o atentado à esquerda, mas alguns órgãos de imprensa já alertavam que poderia ser da autoria de grupos militares descontentes com o processo de abertura.”
Episódio semelhante
O Perdigão e o Vieira citados no texto são, respectivamente, os coronéis da linha dura Fredie Perdigão Pereira e Antonio Vieira, ambos ligados aos esquemas semiclandestinos de repressão durante a ditadura e cabeças da comunidade de informações no Rio de Janeiro. A agente Tânia, por sua vez, era uma pessoa ligada, provavelmente, à PM paulista, que sempre os apoiava nas ações em São Paulo. A oficina, ou desmanche, do Paulo Bessa, de acordo com os autores, funcionou até recentemente.
Segundo o delegado, o Jornal do Brasil, do Rio, seria a próxima vítima dos atentados do seu grupo, mas a ideia foi barrada pelo general Golbery do Couto e Silva, fundador do Serviço Nacional de Informações (SNI) – e autor da famosa frase sobre a sua criação: “Eu criei um monstro” –, que mandou avisar que prenderia todo mundo se o atentado ocorresse. Os grupos de extrema-direita dentro do aparato repressivo do Estado agiam muitas vezes por sua própria conta e estavam profundamente descontentes com a abertura democrática, que tiraria muitos dos seus privilégios.
Se sofreu este atentado da direita, o Estadão também havia sido vítima, em 1968, apenas quatro anos após o golpe de Estado contra o presidente eleito João Goulart, de um outro episódio semelhante, este partido da esquerda.
Explosão deixa ferido o porteiro
Para conhecer melhor esta história, basta ler o que diz, nas páginas 165 e 166, o jornalista João Roberto Laque em sua obra Pedro e os lobos (Ava Editorial), que conta a história do militar e guerrilheiro urbano Pedro Lobo de Oliveira:
“(…) Três da manhã do dia 20 de abril. Pedro Lobo e seus companheiros da esquerda armada estão a postos para mais um atentado. Dessa vez, o alvo é a sede do jornal O Estado de S.Paulo.
Desde muito, a família Mesquita é odiada pelas esquerdas. Os proprietários do centenário matutino e do Jornal da Tarde conspiraram contra João Goulart ainda no início do seu governo e chegaram a passar o chapéu entre empresários, visando financiar o golpe que derrubaria João Goulart.
E, para a afronta aos Mesquita, Pedro é um dos escalados. ‘A gente parou o carro próximo à entrada do jornal, um companheiro desceu e foi lá na entrada do prédio colocar a bomba, que tinha seis quilos de uma dinamite gelatinosa preta. Dali, o comando desceu para a Praça da Bandeira e cada um seguiu para sua casa’.”
A violenta explosão no prédio da rua Major Quedinho com a Martins Fontes, centro da cidade, arrebenta a porta de aço, destrói o saguão revestido de mármore, deixa ferido o porteiro do jornal, Mário José Rodrigues, e estilhaça os vidros das janelas de todos os prédios num raio de quinhentos metros.
Sob torturas
No dia seguinte, 21 de abril de 1968, o jornal declararia, em editorial:
“(…) Esperávamos esta bomba, (…) A bomba que explodiu em nosso edifício na madrugada de ontem é apenas um acidente nessa batalha sem fim. Não foi a primeira e é provável que não seja a última. Não nos surpreendeu. Consideramo-la, afinal, como mais um galardão a marcar uma etapa da nossa luta pela democracia. Apenas isso.”
Ao contrário da que viria somente nos anos 1980, esta deixaria um ferido, o porteiro do jornal, mas por muito pouco não causou a morte de alguns jornalistas que se preparavam para deixar o prédio da rua Major Quedinho, região central de São Paulo, onde hoje funciona o Hotel Jaraguá. No livro Mordaça no Estadão, em reportagem do jornalista José Maria Mayrink, Fernando Mitre, hoje diretor de jornalismo da Rede Bandeirantes e na época editor do Jornal da Tarde, contou, na página 46 do livro que, por muito pouco, ele e outros colegas não sofreram as consequências da explosão:
“(…) Embora não houvesse censura prévia antes do AI-5, a imprensa estava sob pressão desde 1964. Os jornais recebiam ameaças e, às vezes, eram vítimas de atentados, como ocorreu com o Estado em 20 de abril de 1968. Uma bomba explodiu de madrugada na portaria do prédio da Rua Major Quedinho, ferindo o porteiro Mário Rodrigues e levando sobressalto a todos que estavam trabalhando na Redação e na Oficina.
Fernando Mitre, editor de Reportagem Geral do JT, estava entrando no elevador para ir embora, com alguns colegas de sua equipe, entre os quais Guilherme Duncan de Miranda, José Nicodemus Pessoa de Carvalho e dois diagramadores. Antes que o elevador chegasse, gritaram da redação: ‘Mitre, tá faltando um título!’ ‘Vamos voltar para fazer o título’, eu disse. E foi isso que nos salvou. Demos três passos e a bomba explodiu no saguão. Se tivéssemos continuado no elevador, seríamos vítimas da explosão.”
Possivelmente, o centenário diário paulista foi o único caso de jornal que, naqueles anos duros, sofreu ataques da direita e da esquerda. Somente por estes exemplos, tirados de obras jornalísticas, fica fácil entender a importância da verdade e da reconstituição da história para que esta prevaleça. É claro e cristalino que a Comissão da Verdade vai investigar crimes de agentes do Estado, até porque os “do outro lado” já morreram sob torturas horríveis que deveriam envergonhar e enojar qualquer ser humano que se preze. E que venham as revelações que esperamos, para acertar contas com nosso passado. Um antigo ditado chinês diz que um povo que não conhece o seu passado está fadado a repeti-lo, principalmente nos erros.
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[Moacir Assunção é jornalista, professor universitário e escritor e autor dos livros Nem heróis nem vilões, sobre a Guerra do Paraguai, e Os homens que mataram o facínora, a história dos grandes inimigos de Lampião (ambos da Editora Record)]